quarta-feira, 10 de setembro de 2014

"Gostamos de você"

Por Delianne Lima

"Você parece ser uma ótima profissional, gostamos de você. Espere a nossa ligação" - E nunca mais voltaram a trocar palavras.

Débora já havia se acostumado com isso. Afinal de contas, é assim que funciona o mundo corporativo. Se você não conhecer amigos de fulano de tal, pode esquecer. Débora já havia enviado tantos currículos que já nem se lembrava exatamente de quantos. E seu currículo era particularmente bom, mas pelo visto isso não era o suficiente.

Com os pés cansados - e a mente mais ainda, Débora chegou em casa. Jogou a bolsa no chão, tirou os sapatos e a jaqueta e sentou no sofá. Pensou. Seu olhar diretamente para o nada. Pensou mais um pouco.

É hora de viajar.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Minha prima criava um cachorro no quintal da vovó. Apesar de ser cachorro, ele dormia no galinheiro. Seu nome era Pink. Apesar do nome, ele era todo preto. E nós, humaninhos, o ajudávamos a assustar as galinhas. Ali, nos primeiros anos, a vida já me ensinava que felicidade não é coerência.

O cara da televisão mandou toda a audiência chupar um pau de selfie. Mas não era você

Não procuro envolvimento, me sinto meio solitária mas um vento bom assim no sofá não é nada mal. Pegue o que quiser da geladeira, pois de vez em quando a gente pode desejar o bem pra quem não merece. Ligue o rádio, pois precisamos procurar uma lição de moral nessa vida, ao menos uma, antes de pregar as pestanas. Eu posso ser feliz, eu sei. Você também. Você chora, eu sei. Podemos ser felizes juntos. Você, com essa voz que às vezes ecoa, pois você tem essa mania de falar alto mesmo, por dentro desses corredores todos que são consequências das paredes. Inclusive dessas paredinhas que te guardam aí dentro, com todas essas cores. Como é estar aí dentro? Podemos sair de manhã pra correr um pouco. Ou ver um filme sem ler o trailer. Nem sei pra que servem trailers. Não deveriam existir. Espera! Não, chega aqui mais perto! Quem é você? Será que você é quem eu estou pensando. Talvez você seja só mais um cara bonito, aí dentro. Às vezes eu te vejo aí, todo bonito, nessa roupinha. Outras vezes você está naquelas propagandas estranhas, com aquele sorriso forçado. Eu te conheço. Fico sentada, te observando como quem namora um peixinho dentro do aquário. Isso, cante para mim, cante, posso ouvir sua voz e imaginar como seria bela a nossa vida juntos. De repente tive um deja vú de como seria. Eu poderia falar rimando agora, mas isso dá trabalho e não é orgânico. Não sei como você consegue. Agora eu preciso me limpar, ser transparente e sincera. Deixa eu te tirar daí. Isso. Segura a minha mão. Isso. Agora mais forte. Sinta o calor da minha pele. Tá vendo como fiquei arrepiada? Isso acontece sempre que eu chego perto das suas paredes. É porque é assim que eu me sinto com você. Vem cá, me beija. Eu gosto quando você puxa o meu cabelo assim, de leve, pra trás. Não, com força não. Vem assim, de levinho. Com carinho. Eu gosto dos seus ombros. Eles são firmes e macios. Gosto de te abraçar. No início, quando vi o trailer, não queria te conhecer. Mas você me surpreendeu. Por isso não gosto de trailers. E essa magia que só a televisão proporciona fez os meus olhos todos se esvaziarem vendo você limpar o seu cronômetro.  O tempo parou, assim, rapidinho. Mas isso me fez lembrar que eu estava viva. Vem, diz pra mim, diz o que é que você estava fazendo mais cedo? Antes de me encontrar aqui, no meio da rua. Não! Não estamos em casa. Fecha os olhos. Faz de conta que estamos ali, no meio da rua, onde nos conhecemos. Não é mágico? Vou pedir pro DJ tocar aquela música. Quer ver? Ó. E aí? Lembra como foi? Eu estava bem aqui, do lado do coreto, usando aquele vestido branco, lindo, de época. Você passou por mim, assim, descendo daquele cavalo branco, lindo, mas você era mais lindo ainda. Não sei nem que ano era aquilo, mas a película parecia antiga... As retículas mostraram suas mãos acariciando os meus cabelos, e o nosso beijo espantou a lua. Haviam alguns zumbis também. Mas eles eram de outra programação. Aí me deu uma vertigem. "Dê meia volta", você disse. Fui rendida. Acordei sendo cuidada por aquelas camareiras, que me levaram de volta para o estúdio. Quando dei por mim, percebi que eu não te conhecia. Mas não importa. Fazem alguns meses que eu estava morta de saudades. Morta. Então resolvi te chamar, pra terminar o que começou. Não importa o fato de eu não saber quem você é. Só quero as suas cores e sons me matem um pouquinho mais uma vez. Por favor, me abraça. Estou registrando esse momento. Registrando. Te filmando com os meus olhos e te gravando em meus ouvidos, feche os olhos e assista o nosso filme. Assista. Assista.

Tribo dos Córregos

Por Haroldo França

O velho pajé estava deitado em sua rede. Ele pensava em Potira, sua falecida amada. Em sua cabeça quase não haviam fios de noite. Restava apenas um. Ele sabia que quando a noite desaparecesse totalmente de seus cabelos, sua missão naquela aldeia teria se cumprido. Anoiteceu. Ele levantou-se e foi à beira do lago. Olhou a água e no reflexo viu a manhã. Mergulhou. O inverno tomou conta de suas entranhas. Os fios de cabelo de Potira surgiram das profundezas da lama e acariciaram seu rosto. Eram fios de sol. Tudo se aqueceu. Tudo se iluminou.