terça-feira, 11 de novembro de 2014

cerefreio

A porta se abriu e ela estava lá. A jóia rara. Seu dedo encostou em algo sujo, onde havia um ser aracnídeo, transmissor de notícias ruins que lhe espetaram a pele e injetaram em si todo o veneno necessário. A casa se refez. O que era escuro passou a ser iluminado. Tinturas Márcia. A energia ruim se dissipou. A porta se abriu e ela estava lá. A jóia rara. O sol se pôs e ele podia fechar os olhos, pois sentia paz. O relógio caiu no chão e quebrou. Os ponteiros voltaram no tempo. Noite feliz. Noite feliz. Os corredores tão altos, tão altos. Escorregando de barriga. Numa viagem, um objeto voador não identificado. A porta se abriu e ela estava lá. Ganhou um pacote de sabonete lá, numa rifa. Foi lá buscar. Pobrezinho, nasceu em Belém. Os sonhos são válvulas de escape. A realidade pode ser bela, mas só tinha um médico. Jóia rara. Pra perto, pra longe, já não tem mais. Um óculos tá numa faixa de seiscentos a mil reais. Todo mundo se irrita com isso. O corpo cai na água. O cloro invade as narinas. O cloro invade os olhos. O cloro invade os poros. O cerebelo. O cerefeio. Meu óculos. Ninguém sai.
(se sair, Deus arranja um jeito de fazer voltar. Se for rebelde, puxa pelo anzol.)

domingo, 26 de outubro de 2014

De volta aos meus afazeres

O barulho de chuva sempre foi muito convidativo, então, quando a chuva começou, parei tudo o que estava fazendo e fui até a sala, que fica perto do telhado de metal. As gotas fazem mais barulho lá. Rapidamente, parou de chover e voltei aos meus afazeres. Estava bordando uma toalha com o nome do meu afilhado, Eduardo. A chuva começou de novo. Larguei agulha e linha, me joguei no sofá da sala. Fechei os olhos. O meu objetivo era dormir ao som da chuva. Estava calor. Fui procurar um ventilador. Havia um desocupado no quarto da minha tia, então peguei. Liguei o ventilador na tomada, a chuva parou. Voltei aos meus afazeres. Minha tia chegou e questionou a troca de lugar de seu ventilador. Fui até a sala, tirei o ventilador da tomada, pus de volta em seu quarto. Voltei aos meus afazeres. A chuva voltou. Animada, levantei da cadeira. Alarme falso. Sentei novamente. Voltei aos afazeres. Eduardo é um ótimo rapaz. Desconfio que seja homossexual. Mas ele tem nível superior e até onde se sabe, não se envolveu com drogas, diferente do Paulinho. Minha tia me chamou para ajudá-la na cozinha. Disse que não podia pois estava terminando um presente para o Duzinho. Ela disse que precisava com urgência de ajuda. Levantei, fui até a cozinha. Era drama da velha, só queria ajuda pra descascar as batatas. A chuva voltou. Corri com as batatas para o sofá da sala. Minha tia me levou de volta à cozinha. Comecei a suar. Terminei a batata. A chuva parou. Voltei aos meus afazeres. Escolhi uma toalha azul para não influenciar a sexualidade do rapaz. Depois pensei: Já está tão na cara que elle é veado, porque não dei logo uma rosinha? Seria uma forma de dizer que ele tem o meu apoio. Mas pensando bem, ainda há esperanças, e prefiro que ele não seja homossexual. Fiquei triste, pois ainda não havia conseguido realizar o fetiche de dormir ao som da chuva. Paulinho chegou em casa. Me cumprimentou, passou uns 10 minutos e saiu. Aí começou a chover. Minha tia gritou corre menino, que lá vem toró! E quem correu fui eu, pra deitar no sofá e dormir, mesmo passando calor. Aí percebi que faltava a porta. O menino desparafusou a porta pra vender pros traficantes. Primeiro foram as janelas, agora isso. Mas eu confesso que gostei, porque assim o som da chuva entra com mais força na sala. O telefone tocou. Era o Duzinho. Dizendo que viria nos visitar mais cedo do que o previsto. Corri de volta aos meus afazeres. Só faltava bordar uma letra na toalha. Duzinho chegou em cima do gongo. Entreguei a toalha. Ele logo abriu um sorrisão. Estava escrito: EDUADRO.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

"Gostamos de você"

Por Delianne Lima

"Você parece ser uma ótima profissional, gostamos de você. Espere a nossa ligação" - E nunca mais voltaram a trocar palavras.

Débora já havia se acostumado com isso. Afinal de contas, é assim que funciona o mundo corporativo. Se você não conhecer amigos de fulano de tal, pode esquecer. Débora já havia enviado tantos currículos que já nem se lembrava exatamente de quantos. E seu currículo era particularmente bom, mas pelo visto isso não era o suficiente.

Com os pés cansados - e a mente mais ainda, Débora chegou em casa. Jogou a bolsa no chão, tirou os sapatos e a jaqueta e sentou no sofá. Pensou. Seu olhar diretamente para o nada. Pensou mais um pouco.

É hora de viajar.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Minha prima criava um cachorro no quintal da vovó. Apesar de ser cachorro, ele dormia no galinheiro. Seu nome era Pink. Apesar do nome, ele era todo preto. E nós, humaninhos, o ajudávamos a assustar as galinhas. Ali, nos primeiros anos, a vida já me ensinava que felicidade não é coerência.

O cara da televisão mandou toda a audiência chupar um pau de selfie. Mas não era você

Não procuro envolvimento, me sinto meio solitária mas um vento bom assim no sofá não é nada mal. Pegue o que quiser da geladeira, pois de vez em quando a gente pode desejar o bem pra quem não merece. Ligue o rádio, pois precisamos procurar uma lição de moral nessa vida, ao menos uma, antes de pregar as pestanas. Eu posso ser feliz, eu sei. Você também. Você chora, eu sei. Podemos ser felizes juntos. Você, com essa voz que às vezes ecoa, pois você tem essa mania de falar alto mesmo, por dentro desses corredores todos que são consequências das paredes. Inclusive dessas paredinhas que te guardam aí dentro, com todas essas cores. Como é estar aí dentro? Podemos sair de manhã pra correr um pouco. Ou ver um filme sem ler o trailer. Nem sei pra que servem trailers. Não deveriam existir. Espera! Não, chega aqui mais perto! Quem é você? Será que você é quem eu estou pensando. Talvez você seja só mais um cara bonito, aí dentro. Às vezes eu te vejo aí, todo bonito, nessa roupinha. Outras vezes você está naquelas propagandas estranhas, com aquele sorriso forçado. Eu te conheço. Fico sentada, te observando como quem namora um peixinho dentro do aquário. Isso, cante para mim, cante, posso ouvir sua voz e imaginar como seria bela a nossa vida juntos. De repente tive um deja vú de como seria. Eu poderia falar rimando agora, mas isso dá trabalho e não é orgânico. Não sei como você consegue. Agora eu preciso me limpar, ser transparente e sincera. Deixa eu te tirar daí. Isso. Segura a minha mão. Isso. Agora mais forte. Sinta o calor da minha pele. Tá vendo como fiquei arrepiada? Isso acontece sempre que eu chego perto das suas paredes. É porque é assim que eu me sinto com você. Vem cá, me beija. Eu gosto quando você puxa o meu cabelo assim, de leve, pra trás. Não, com força não. Vem assim, de levinho. Com carinho. Eu gosto dos seus ombros. Eles são firmes e macios. Gosto de te abraçar. No início, quando vi o trailer, não queria te conhecer. Mas você me surpreendeu. Por isso não gosto de trailers. E essa magia que só a televisão proporciona fez os meus olhos todos se esvaziarem vendo você limpar o seu cronômetro.  O tempo parou, assim, rapidinho. Mas isso me fez lembrar que eu estava viva. Vem, diz pra mim, diz o que é que você estava fazendo mais cedo? Antes de me encontrar aqui, no meio da rua. Não! Não estamos em casa. Fecha os olhos. Faz de conta que estamos ali, no meio da rua, onde nos conhecemos. Não é mágico? Vou pedir pro DJ tocar aquela música. Quer ver? Ó. E aí? Lembra como foi? Eu estava bem aqui, do lado do coreto, usando aquele vestido branco, lindo, de época. Você passou por mim, assim, descendo daquele cavalo branco, lindo, mas você era mais lindo ainda. Não sei nem que ano era aquilo, mas a película parecia antiga... As retículas mostraram suas mãos acariciando os meus cabelos, e o nosso beijo espantou a lua. Haviam alguns zumbis também. Mas eles eram de outra programação. Aí me deu uma vertigem. "Dê meia volta", você disse. Fui rendida. Acordei sendo cuidada por aquelas camareiras, que me levaram de volta para o estúdio. Quando dei por mim, percebi que eu não te conhecia. Mas não importa. Fazem alguns meses que eu estava morta de saudades. Morta. Então resolvi te chamar, pra terminar o que começou. Não importa o fato de eu não saber quem você é. Só quero as suas cores e sons me matem um pouquinho mais uma vez. Por favor, me abraça. Estou registrando esse momento. Registrando. Te filmando com os meus olhos e te gravando em meus ouvidos, feche os olhos e assista o nosso filme. Assista. Assista.

Tribo dos Córregos

Por Haroldo França

O velho pajé estava deitado em sua rede. Ele pensava em Potira, sua falecida amada. Em sua cabeça quase não haviam fios de noite. Restava apenas um. Ele sabia que quando a noite desaparecesse totalmente de seus cabelos, sua missão naquela aldeia teria se cumprido. Anoiteceu. Ele levantou-se e foi à beira do lago. Olhou a água e no reflexo viu a manhã. Mergulhou. O inverno tomou conta de suas entranhas. Os fios de cabelo de Potira surgiram das profundezas da lama e acariciaram seu rosto. Eram fios de sol. Tudo se aqueceu. Tudo se iluminou. 




sexta-feira, 29 de agosto de 2014

De repente eu me vi

Por Haroldo França

De repente eu me vi. E não foi pelo espelho. Foi pelas frestas da porta de madeira da casa da minha avó, que não visito há tanto tempo. Um vento soprou no meu ouvido me convidando para um mergulho na piscina de plástico que havia nos fundos do quintal, perto da árvore. Eu prendi a respiração, mergulhei, e de repente eu me vi. Levando um tombo de bicicleta que me levaria a aprender o que é ficar com um braço enfaixado por alguns meses. Eu sonhei que visitava o céu e folheava o livro da vida. Eu enfiei um pedacinho de madeira por dentro do gesso, pra aliviar alguma coceira, e de repente eu me vi. Entrando na sala de aula da oitava série B vestindo uma roupa azul cintilante, gargalhando, com um anel dourado no peito, dizendo que iria dominar a Rússia, na minha primeira encenação de teatro na escola. Resolvi me matricular em uma escolinha de teatro, e de repente eu me vi. Tentando organizar pensamentos, traçar planos, desenvolver metodologias, ser alguém. A água daquela piscina de plástico foi se tornando cada vez mais funda, de modo que a imaginação me levou ao fundo do mar, onde encontrei uma ostra. Dentro da ostra havia uma bicicleta. E foi pedalando entre os peixes gigantes que eu me vi. E um deles me engoliu. De repente, eu não me vi mais.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Senhor Armando

Por Delianne Lima

Todos os bancos daquela avenida eram cinzentos, sem cor. Até que um dia, resolveram pintá-los. Escolheram verde petróleo. Só que, de cinza, não mudou muita coisa. Sentado em um daqueles bancos, o Senhor Armando passava suas tardes jogando gamão com alguns compatriotas. Naquela terça-feira, o pacote estava pronto: seu antigo boné de algum vereador desconhecido, uma camisa meio desabotoada devido ao calor e, claro, sua garrafa de Cerpa. A cerpinha de cada dia era sua mais fiel companheira.

Para começar as partidas sacramentais de gamão, alguns de seus amigos que trabalhavam nos arredores sentavam-se nos bancos. Senhor Armando nunca ganhava uma partida sequer, mas se sentia feliz com sua rotina diária.

Porém, um dia pintaram os bancos de outra cor: vermelho. Essa cor amedrontava o Senhor Armando de uma forma ensurdecedora.

Nunca mais jogou gamão.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

As cidades vivem mais tempo que as pessoas

Por Haroldo França
Alzira estava sentada na mesma posição há duas horas. Na TV, algumas letrinhas subindo. Seus braços apoiados nos braços da poltrona. Respiração calma. O final da história foi emocionante. O filme fez Alzira esquecer da vida. O cinema é uma morte transitória. As letrinhas continuaram subindo e Alzira permaneceu imóvel, na tentativa de prolongar um pouquinho mais esse não viver. Alzira mora só, e aos quarenta, seu maior medo é passar o resto de seus dias sem ter para quem cozinhar além de si mesma. Os créditos do filme acabaram e junto com eles a música que a fazia relembrar os melhores momentos daquela obra de arte. Ao lado da TV, a lista de compras do supermercado. Alzira apoiou os cotovelos sobre os joelhos. Passou a mão por entre os cabelos bagunçados. Fechou os olhos.  Respirou devagar e profundo. Abriu os olhos. Umedeceu os lábios. Levantou-se.

sábado, 12 de abril de 2014

Mesmice degustativa

(Por Delianne Lima)

Mesma terra, mesmo lar, mesmo ar, mesmas andanças, mesmo espírito. Sou eu. Esse é o lugar. Essa é a história, a minha história. O meu sorriso, o meu drama. Meu, meu, meu. Possessividade, possessão, possessivo. Pronome possessivo.

Menina de apartamento. Menina de afogamentos. Menina de menina. Menina de menino. Menina melindrosa de apontamentos. Desapontamentos desapontados. Desnudos, desencarnados. Gritaria fumegante, medo paralisante.

Neurose.

Paralisia midiática. Covardia de rua. Medo em transe. Trancafiada em situações hipotéticas. Segura a bolsa, segura o desespero. Segura na mão de Deus e vai. Vai ali na esquina, vai na sombra, vai. Mas vai. Vai sem parar e sempre, mas não devagar. Nunca devagar. Nunca desabar. Vai. Vamos.

Neurose múltipla. Orgasmática.


Ê.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Sensos e Sentidos

(Por Delianne Lima)

De sentir falta. Daquele grande e delicado buraco naquele cantinho imperfeito do coração. As faltas, falácias. Pequenas mortes de memórias embebidas de nostalgia. O passado que sempre fala do presente. O presente que sempre fala do passado. Mas e o futuro? Se o presente é esmagado pelo passado, o futuro não se faz presente. E é sempre neste círculo vicioso de falhas nossas que a vida rodopia e flutua pelo ar, nas nossas contações de histórias de vida, tatuagens de momentos.

Enquanto as marcas envelhecem, o coração endurece. A bala chega no peito, mas não consegue perfurar a auto-defesa. Carcaças novas e velhas que se travestem de armadura. O coração, cada vez menor, pequeno, se esconde de medo do escuro bem ali, atrás dos escudos gigantescos. A idade aumenta e o medo também. A covardia chega, se instala e começa a fazer parte de tudo, de todas as entranhas. Medo de argumentar, de olhar, sentir, tocar, lembrar. Medo de sentir. Sem sentir.

Com grandes saltos altos, a realidade grita pela vida e tenta, sem sucesso, salvar o pequeno e amedrontado coração. Cheio de marcas e cicatrizes profundas, não consegue mais enxergar. Delicada, porém voraz, a dama de saltos o resgata com um belo banho de espumas de esperança e leveza. Então, seus pés saem do chão e alçam voo com um largo sorriso no rosto.

Era outono e uma nova vida surgiu.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

#OndeEstaOCupido

Por Haroldo França

20 meses morando em São Paulo e minhas pesquisas ainda não averiguaram se o amor aqui de fato existe ou não.


Meus estudos revelam que o Cupido já se mudou daqui há tempos, de mala e cuia, pelo fato de não ter conseguido se adaptar à tecnologia dos smartphones.

Em contrapartida, popularizou-se um amor artificial, desenvolvido em plataforma Android, com curto prazo de validade e renovável semanalmente. Porém, apresenta vários "bugs" em seu funcionamento, gerando insatisfação nos usuários e muitas reclamações no PROCON.

Há boatos de que o Cupido, em sua despedida da cidade, teria pichado em um muro que "a vida é muito curta para viver em SP". Também há quem diga que ele foi visto visitando a cidade em feriados prolongados, porém, não há registros.

Prossigo com as investigações.