segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O tesão e a barata

Por Haroldo França

Meia noite. Estava eu esperando ônibus em uma rua deserta e suja. Além de mim, havia apenas um casal de namorados trocando carícias ardentes, encostados numa parede. Cansado, fui me encostar também. Então, olhei para o casal e vi uma barata robusta, bruta e corpulenta caminhando sobre a BUNDA da mulher. Tranquilona, a barata. Despreocupada. E o rapaz quase botando a mão.

Na mesma hora me desencostei da parede e me certifiquei de que não havia nenhuma barata em mim. O casal continuou a trocar fluidos calorosos, e fiquei assistindo a barata, libidinosa e otimista, andar pelo corpo da mulher, até passar para o corpo do rapaz. Barata assanhada. Barata atrevida.

Não satisfeita, nossa amiga voyeur alçou voo e encontrou seu ninho entre as madeixas da pobre moça, enquanto o rapaz tentava por a mão naquela parte do corpo que, ironicamente, é apelidada de barata.

Naquele momento, eu rezava para que meu ônibus chegasse logo. Não sabia se interrompia o ato para avisar o casal da presença da barata, ou se avisava a pobre barata que aquele casal estava praticando imundícies. Entreguei na mão de Deus.

Os dois, então, continuaram sua cópula, enquanto nossa amiguinha se cansou daquela falta de dignidade e voltou para sua parede. Meu ônibus apareceu e a vida seguiu seu rumo. Provavelmente, aquele rapaz e aquela moça jamais desconfiarão que um dia fizeram ménage à trois com Dona Baratinha. Apenas desejo que os filhos nasçam com saúde. Os da barata.

domingo, 29 de setembro de 2013

Parasita

Por Haroldo França

Bom dia. Meu nome é Haroldo. Sei como se sente. Eu moro no andar de baixo. Eu ouço você tirando o seu lixo. Eu ouço você com os seus namorados. Eu ouço você com você mesmo, também. Eu ouço você dando descarga na privada. Eu ouço você desligando seus pensamentos. Eu desligo os meus, também. Tem momentos, no meio da noite, que a única coisa que eu ouço é você... e... me desculpe a sinceridade, mas... você não soa legal. Sei lá, você não soa certo. Não soa bom. Eu sempre ouço você desligando seus pensamentos, e fica tudo quieto... Tudo tão quieto! Tão calmo, como uma sirene de polícia checando a nossa vizinhança, esperando que alguma lâmina deslize ou que alguma bala se lance para um golpe final, mas nada acontece. Nada! Nada...


terça-feira, 4 de junho de 2013

Terço

Por Delianne Lima

"Vamos lá, Senhor Copack. Me venda só mais uma. Só mais uma, vá", implorava a Senhora Custódia, como de costume.
Todos os dias era a mesma coisa: Custódia esquecia do que já tinha feito e elucidava sempre as mesmas questões. O Senhor Copack, encarecido, topava a reencenação cotidiana. Era quase como uma reza, bem estruturada e repetitiva. Dona Custódia era o terço que Copack não tinha.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Vida e Velocidade

Helena é mamãe.
Helena trabalha como dentista.
Helena frequenta a igreja aos domingos.

Helena arruma o cabelo do Júnior. Extrai um dente. Pede perdão à Deus.
Helena tem contas a pagar. Uma bíblia nova para Júnior. Está na hora da papinha!
Helena arruma os dentes de Cristo. Papinha na boca do cliente no consultório. Júnior na cruz.

Helena no altar. Júnior é dentista. Jesus usa corega.

Por Haroldo França

sábado, 4 de maio de 2013

Morada

Por Haroldo França

Estava tudo em paz comigo e com as minhas paredes. Eu confiava na proteção delas, até o momento em que surgiram as tuas infiltrações. Passei, então, a me sentir menos confortável aqui dentro. Olhei para espelho manchado e vi um semblante pálido, envelhecido, rachado, como se a camada de tinta do meu rosto tivesse perdido a validade. Então deitei, fechei os olhos e te vi, invadindo o meu teto com tuas goteiras. Uma rachadura surgiu no canto da parede, e você escorreu mais ainda. Foi tomando o chão da casa, e quando dei por mim, já estava inundando tudo. Passei a não me sentir mais seguro aqui dentro. Resolvi, então, abrir a janela enferrujada, para enfim deixar tua luz entrar, numa rajada de cores quentes que invadissem e revitalizassem todos os cômodos, mas o que entrou foi uma cachoeira negra, suja e traiçoeira, que me derrubou, me forçando a te beber, me engasgando e tentando me arrancar a vida. Quis pedir ajuda, mas não. Preferi ficar aqui dentro, contigo, brincando de flutuar...

domingo, 28 de abril de 2013

Mestre dos Magos

Por Haroldo França

O quê? Do que você me chamou? Não, eu acho que não entendi direito. Quer dizer que é isso, seu Agenor? Quer dizer que acordo todos os dias na linda madrugada carioca pra pegar aquele trem lotado de pessoas felizes e cheirosas, pra chegar nesse trabalho adorável, dar o meu melhor todos os dias, ter que conviver com um chefe maravilhoso e incrível que nem você, pra ouvir isso? "Veadinho"? Acho que isso não pega bem pra nossa relação profissional, seu Agenor. Não condiz com a sua imagem. Sim, porque a sua imagem não é de uma pessoa que fala esse tipo de baixezas. A sua imagem é assim, tipo... Já assistiu Harry Potter? Então, sabe o Voldemort? Pois é, eu acho que a sua imagem é mais ou menos por aí. Ou então daquele velho dos Simpsons, sabe, o chefe do Homer? O pessoal do RH já até fez uma montagem com uma foto sua nesse desenho. Tá rolando em todos os e-mails corporativos. E no grupo do Facebook também. É, a gente criou um grupo secreto no Facebook só pra falar de você. É que você é uma pessoa muito querida nessa empresa, seu Agenor. Tanto que tem até apelidinhos. Tipo assim... "Mestre dos magos". Essa quem inventou foi a dona Alcides, dos serviços gerais. Sim, ela tem face. Então, seu Agenor, assim, só uma dica... Tente fazer com que as suas atitudes sejam condizentes com a sua imagem. A sua imagem feia. Decrépita. Nojenta. Desprezível. Desagradável. Abominável. Xexelenta. Grotesca. Mulambenta. Que além de tudo, peida em reunião. Né. Que além de tudo, tem bafo ruim e fala cuspindo na cara de todo mundo. Lá no setor de finanças eles até fizeram uma vaquinha pra comprar aqueles chapeuzinhos com guarda-chuva, sabe? De frevo. Pra se proteger da chuva de cuspe com cheiro de café com leite. Pois é. Quanto à minha imagem? Sim, eu sei que passo essa imagem, de ser um cara mais delicado... Sim, eu sei. Mas, pelo menos eu tenho família. Amigos. Você não. Não tem esposa, não tem filhos, nem amigos... Mas tem uma empresa, né? Uma adorável empresa. Então é isso, seu Agenor. Qualquer coisa, vou tá ali no meu ramal, se quiser falar comigo é só gritar "ei, veadinho!", que eu vou responder "fala, peidão!". E assim a gente segue nesse dia-a-dia abençoado, né, seu Agenor? Passar bem.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Na cama com Terezinha


Existem dias que fogem do comum. Dias nos quais a vida resolve, por um instante, escapar dos protocolos cotidianos para nos presentear com um gole de cerveja. Assim foi quando conheci dona Terezinha, num fim de tarde alaranjado, no bairro da Pedreira, em Belém. Quando ela, pela janela, me convidou para entrar e sentar em sua poltrona improvisada, naquele quartinho, que ficava em cima de um boteco, para bater um papo.

Hoje, provavelmente, ela já não lembra daquele dia, nem de mim, mas de algum modo (o qual não sei explicar) ela tocou em meu coração e deixou uma marca que já dura quatro anos.

De lá pra cá, mudei de cidade e acumulei na garganta a vontade de usar o teatro como meio para falar de algumas coisas que me enlouquecem. Então, lembrei dessa mulher.

Agora, terei a oportunidade de visitá-la novamente. Não a pessoa em si (ainda), mas a marca que ficou - e que trará consigo, por consequência, outras marcas que aqui estão, de outras pessoas e experiências que me atravessaram e que me enlouqueceram.

Poderei, então, abraçá-la, sorrir e dizer que dolorosamente usarei a alma para escrevê-la. Venha, Terezinha! Cative e enlouqueça!