quinta-feira, 31 de maio de 2012

Das verdades que vêm de dentro

Uma cratera se abriu embaixo da nossa mesa. Vi um de meus grandes amigos ser engolido subitamente pela terra. Parecia tudo tão bem até então. Conversávamos sobre vida profissional. Papo agradável, cerveja gelada. Foi um susto. Levantei atordoado, e urubus levaram para o céu os corpos de outros amigos que ali estavam. Restou apenas eu.

Imediatamente, corri. Respiração frágil. Fui para o meio da rua e carros atravessaram meu corpo sem me tocarem. Percebi que eu já não tinha mais sombra. Nem massa. Nem cor. Invisível. Então atravessei paredes, entrei em casas, salas, quartos, tentei sacudir as pessoas e gritar por socorro, mas elas, nada. Tudo ao meu redor começou a se apagar. Existência se diluindo no vazio. Lágrimas sem olhos. Vapor.

Até que senti alguém cutucando o meu ombro. Eram eles. Estávamos no mesmo lugar. A mesa do bar. Tudo normal. Tudo claro. Eu olhei em volta, e comecei a rir. "Liga torta", pensei. Conversávamos sobre sexo e relacionamentos. Descobrimos que somos tão parecidos! Sabe, eu gosto deles. São pessoas tão próximas a mim. Tão queridos. É realmente uma pena que eu não consiga lembrar seus nomes.

Por Haroldo França

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Amarelo-ovo

(Por Delianne Lima)

E o sabor de cointreau pairava no ar, mas não mais que o cheiro de cigarro dos seus dedos.

Noêmia não parava de fumar.

O nervosismo vinha da expectativa de sempre: o bendito carro amarelo. "Enquanto aquele carro amarelo não passar, não vou dormir. Não dá". Um, cinco, vinte minutos. O piscar de olhos e seu cigarro já não eram mais os mesmos. Multiplicavam cada vez mais. Noêmia tinha problemas. Problemas de TOC, de toque. Pintava a boca de vermelho, mas nada mudava. Sua alma continuava incolor.

E então vislumbrava o carro amarelo. Aquele fusca velho, abatido. Quase que não conseguiam andar, os dois. Trêmula, Noêmia desceu as escadas, tentando alcançar o amarelo-ovo andante. Mas cadê? Sua vida já não tinha portas alcançáveis. Estava presa ali, naquele quarto, naquela escada. Tenta bater na porta, sem sucesso. Tudo que consegue é forçar um sorriso.

Está presa por trás de seus olhos. Sua alma incolor ligou o carro e deu a partida.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Caridade

Deu aquela última mirada nas estrelas. Os prédios altos. Lembrou de quando morava no interior. Quando deitava no chão de terra batida e olhava as estrelas entre as folhas das árvores, sonhando com o dia em que se mudaria para a cidade grande. Percebeu que já não haviam árvores. Somente um viaduto, e em algum lugar acima, a Lua. Se virou para o lado e cobriu a cabeça com o cobertor.

O chão estava frio e úmido. Encolheu o corpo. O velho Tobias deu três latidos.

-Cala a boca, cachorro.

Um pneu de carro passou cantando no asfalto e deu um grito bem no seu cangote. Susto. Tobias foi esmagado. Uma mulher, com o rosto sangrando, saiu do carro, deu três passos frágeis e caiu no chão, com os olhos bem abertos. As unhas pintadas de vermelho arranhando o concreto da calçada.

-Me ajude... Senhor... Jesus...

Desconfiado, recuou. Não sabia até que ponto aquilo estava mesmo acontecendo. Segurava com força um canivete que trazia consigo.

-Tu deve tá me confundindo. O meu nome é Edson. Tu matou o meu cachorro.

-Senhor Deus!... Por favor... Olhe para mim...

As unhas vermelhas de sangue apertando a mão do mendigo. Respiração trêmula.

-Senhor... Você me perdoa?

Os olhos nos olhos. Úmidos.

-Sim, minha filha. Perdôo. Perdôo tudo, pois sei que é de coração que falas. Saiba que eu sempre te amei, e sempre te amarei. Você sempre foi uma menina boa. Você sabe disso. Agora durma... Durma em paz, que te encontrarei no Reino dos Céus.

Desfaleceu em seu colo, como uma filha.

Longo suspiro.

Amanheceu.

Por Haroldo França

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Sorvete azul pinta o meu rosto de céu

Por que tu tá me olhando assim? Teu jeito de olhar é tão desconfiado, parece até que tá se achando! Ó lá. Do outro lado da rua. Tá vendo? A Fátima ali, andando, toda toda. Acredita? Uma tarde assim, tão gostosa. As folhinha tudo caindo. Abelhinha zanzando...

A Fátima é trabalhadeira que só, ela. Trabalha lá em casa, viu? Parece uma abelhinha. Só tu vendo. Abelhuuuuda! Risos. Pára! Vocês querem esquartejar o meu filho! ... Caetano gosta de doce de leite, sabe? É, foi esse nome que eu dei pra ele. Por causa do Caetano. O outro, lá do rádio. Tá ouvindo? ... Ontem, a Fátima não deixou eu atravessar a rua. Tá metida. A vida é assim mesmo. Um saco, viu? Mas é um saco!

Pára! Vocês querem esquartejar o meu filho! ... O meu filho é lindo, ele. Chama Caetano. Cadê Fátima? Ah, essa menina não colocou o leite da criança, ô Fátimá! Cadê? Só quer saber de Jornal Nacional agora! Onde esse mundo vai parar desse jeito? Me diz! Me fala! A gente anda na rua e pra todo lado é vaca pendurada, vaca pendurada, vaca pendurada! Ah, saco cheio, viu? Desse jeito a gente não tem tempo nem pra trepar!

Sabe, a Fátima vive zanzando. Abelhinha pra cá, abelhinha pra lá... Ó lá. Ó meu filho. Ali, do outro lado da rua. Não é lindo, ele? As folhinha tudo caindo. Fim de tarde dourado... Passarinho piando... As vaquinhas tudo miando, tadinha. E eu lá, montada na trepadeira. Sabes que eu gosto mesmo é de uma boa trepada. A Fátima também gosta. Virou até apresentadora. Mas o gato não lava o pé. Lambe as unha tudo.

Duvida eu ir lá buscar ele? Ó lá. Tão lindo, meu Caetano. É o meu fruto. Eu nunca consigo buscar, sabe? Parece aquela manga gostosa que tá na mangueira e a gente fica com medo de subir pra pegar, e fica jogando pedra pra ver se cai. Mas eu não sou louca de jogar pedra no meu bebê, né? Mas aí eu tento atravessar e rua, e lá vem a Fafá... Caetanô! Mamãe tá indo aí buscar! Ô, Caetano! Ei... Não... Me solta! Me soltá! Pára! Me larga, Fátimá! Ô, Caetáno! Pára! Párá! Vocês querem esquartejar o meu filho!!!

Por Haroldo França