sábado, 10 de dezembro de 2011

Gostosuras da Vovó Irene

Mais um dia tranquilo no vilarejo Sorriso. Todos apreciam as Gostosuras da Vovó Irene. Cada coxinha custa apenas R$0,25 (vinte e cinco centavos) a unidade. Desde a morte de seu marido Lourival, preparar delícias sob encomenda foi a saída viável para ajudar nas despesas de seus 12 (doze) filhos, 27 (vinte e sete) netos e 4 (quatro) projetos de bisnetos, sobretudo os gastos com clínicas de reabilitação para seus 8 (oito) netos dependentes químicos; custos com advogado para seus 3 (três) filhos envolvidos com o tráfico de crianças/órgãos; as sessões com psicólogo anti-gay para sua filha que ainda não pariu; e claro, os 10% do pastor.

Naquela manhã, dona Irene deixou as coxinhas queimando na frigideira. Com seu melhor vestido branco, desenterrou o batom da gaveta e se fez linda. Quando Lúcia, a filha lésbica, chegou em casa, encontrou apenas um bilhete: "Lourival me pediu em casamento. Estou em lua de mel. Não me esperem de volta". A cortina branca havia sido arrancada.

Com um ramo de flores roubadas do quintal da vizinha, dona Irene desfilava pelas ruas do vilarejo. Sorridente, seus olhos eram de uma vida que não os visitava há muitos anos. Algumas pessoas achavam graça, já outras ficavam desconcertadas com tão constrangedora liberdade.

Logo atrás do vilarejo havia um riacho de águas profundas. Era o riacho da infância de Irene. As pernas enrugadas entrando n'água. Um frio gostoso tomando conta de seus cabelos brancos. Uma dança suave em meio ao flutuar das flores. Um véu descortinando em câmera lenta o doloroso encontro de Irene com a Paz.

~elipse~ 

-Mas vovó, o que foi que deu na senhora? Nunca mais faça isso! Me promete? Santo Deus, a senhora podia ter... Santo Deus... Prometa que nunca mais fará isso... Por favor, prometa...

O sorriso de dona Irene era de uma delicadeza e doçura capazes de rasgar no meio um coração:

-Não fique triste, minha querida. Pegue aqui, na minha barriga. Você está sentindo? Não é lindo? Eu estou grávida... E é do Lourival... Tô esperando um filho do Lourivalzinho, moça.

Uma legião de filhos e netos a chorar. Quase todos. E não aconteceu uma, duas, ou três vezes. As tentativas de fuga da vovó Irene eram constantes. Arrumava um jeito de sair pela janela, enquanto os outros dormiam. Uma legião de filhos e netos sem dormir. Quase todos. Os comentários dos vizinhos eram impiedosos. As vendas caíram. Dona Irene passou a ser conhecida como a velha caduca de Sorriso.

Nove meses se passaram.

-Me deixem sair daqui! Preciso encontrar o Lourival! Preciso ter meu bebê!

Um choro de criança ecoou pela casa. Perplexos, os filhos abriram a porta do quarto. Vazio. Janela aberta. Sobre o retrato do falecido Lourival fixado na parede, uma mensagem deixada com batom vermelho:

"Amo você."

(Por Haroldo França)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Curuminha

(Por Delianne Lima)

Ela saía da sala como se saísse de uma sessão de tortura. Ouvido torturado, dolorido, pedindo ajuda. Seus passos saíam lentamente do seu corpo, como se não houvesse controle. Ela via seus pés pequenos, seus dedos grandes. Percebendo-se, já estava no portão. Estava escuro. Os lixeiros ali à frente, trabalhando na escuridão de seus pensamentos. Não tinha mais forças pra andar. E nem vontade. A vontade mesmo era de sair dali com toda a força. Gritar aos quatro ventos. Só gritar. Não havia palavra certa, a dor não se revertia em palavras. Era apenas grito. Grito e suor e lágrimas. Os pés cambaleariam de falta de rumo.

Era isso. A falta de rumo era evidente. Era tão evidente, que a tratava com força e, sem misericórdia, a colocava contra as coisas e pessoas mais importantes de sua vida. Ou que ela achava, pelo menos. Vai que assim o rumo se acharia e a encontraria. Metas a encontrariam. Uma vida a encontraria e pediria, por gentileza, para acomodá-la. A vida. A vida aos vinte anos não é fácil. Uma das épocas onde a distância é extremamente real.

Ela, então, abriu a bolsa e pegou seu caderno. Aquele desenho seguido de poema a fazia odiar. Arrancou-lhe do caderno e arrancou-lhe a vida. O papel amassado escorria por entre as águas da chuva e ia embora, devagar, devagar.

O papel já não existia.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Des

Por Leandro Oliveira

Uma vez eu pensei saber, dentro desses planetas e luas, que era pleno. É, plenitude, e toda aquela coisa sobre a conquista de um meio termo, um conforto de espírito ou um entendimento a mais sobre ser quem se é. Então pensei, pensei, pensei. Até a cabeça doer. Até entender. Até aceitar. Até abrir poros. Até chorar. Até surtar. Até manifestar. Até importunar. Até auto-subtrair. Até aceitar. Até tranquilizar.

Até saber que amor é desequilíbrio. Em nível qualquer.

E desequilíbrio é felicidade.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A fábula do Patinho Bobby

Bobby era um desses patinhos feios que andavam perdidos no meio da galinhada. Por vezes sentia-se infeliz e frequentemente só. Amava muito seus pais, mas eles nunca o entendiam. "Bobby, que história é essa de assustar as galinhas? Você é um pato, e não um cachorro!", dizia a senhora Bobby. Os pais de Bobby não o compreendiam. Talvez eles não quisessem entender. Bobby sempre foi um patinho diferente. É difícil demais para um pai aceitar um filho que se comporta como um... mamífero.

Certa noite, enquanto todos dormiam, o patinho Bobby recebeu uma visita inesperada no galinheiro. Era um vaga-lume.

-Eu sou a Fada-lume! Vou te tirar desse lugar e transformá-lo num lindo cisney!
-Mas como assim? Um lindo cisne, eu?
-Sim, um lindo cisney! A partir de hoje sua vida mudará bruscamente!
-Mas égua, do nada. Tá bom.

Desde então, o tempo passou e o patinho Bobby se transformou em um lindo cisne. Ele passeava com os outros lindos cisnes na lagoa. Eram todos esbeltos e de bico empinado. Passavam o dia todo nadando na lagoa. Pra lá e pra cá. Pra lá e pra cá. Bobby se sentia realizado. Ele finalmente era alguém. Feliz. Único. Pleno. Nadando na lagoa. Pra lá e pra cá. Pra lá e pra cá. Aos fins de semana, voltava ao galinheiro de sua infância para visitar os pais, e nas segundas voltava para o lago dos lindos cisnes. E era assim toda a semana. Pra lá e pra cá.

Mas o tempo é implacável. Certo dia, Bobby estava nadando na lagoa e pensou: "Mas será que é isso mesmo? Será que essa vida é mesmo pra mim? Será que eu não estou tentando me enganar? Sabotar a mim mesmo? Não... Não adianta tentar se esconder de si, pato covarde. Aquela fada maldita... Não adianta ceder ao conformismo. É hora de sair daqui! Lutar por aquilo que eu acredito, e sempre acreditei! Chega dessa vida medíocre! Chega dessa corja de falsidade! Eu não faço parte disso! Eu estou infeliz! EU ESTOU INFELIZ!!!"

-Aúúúúúúúú! (quén)

Repentinamente, todos os lindos cisnes voltaram-se para Bobby. Que comportamento estranho era aquele? Quem ele pensa que é? Bobby, então, voltando a si, voltou a empinar seu bico de sonhos, disfarçando, como se nada tivesse acontecido. Não foi nada, não. Só um repente. Já passou. E tudo continuou como estava.

E ninguém reparou que no bico daquele lindo cisne havia uma gota de lágrima. A vida, então, seguiu o seu rumo, como tinha que ser. Pra lá e pra cá. Pra lá e pra cá.



(Por Haroldo França)