domingo, 31 de outubro de 2010

Preparar... Apontar... Ruth!

(Por Haroldo França)

Segunda-feira, 06 de fevereiro de 1995. A sirene tocou, e todas as escadarias da Instituição foram tomadas por uma imensa nuvem cinza. Eram crianças de várias idades, vestidas com seus uniformes cor-de-fumaça. Volta às aulas. O chão tremeu, como se uma manada de elefantes estivesse invadindo o quarteirão. Era a hora do recreio.

No décimo quinto andar da Instituição, a nova professora, na sala de aula da terceira série R, aproveitou para retocar a maquiagem. Mas algo a incomodava. Era a pequena Ruth, que se mantinha sentada na sua carteira, ao fundo. Olhar fixo na professora. Ô, molequinha esquisita!

Todos os dias eram assim. Desde ano passado. Todas as crianças desciam pra brincar, menos Ruth. Ninguém parece gostar dela. Talvez por ser tão... estranha. Ninguém nunca ouviu a sua voz. Ninguém nunca viu os seus pais. Apenas a vêem entrando em um carro cinza, pontualmente, depois que a aula termina. Todos os dias. Quando seu nome é mencionado, na hora da chamada, ela não diz nada. Apenas ergue um isqueiro no ar, e o acende. É o suficiente. Todos fingem já terem se acostumado com Ruth, mas a verdade é que ninguém nunca a engoliu. Todos se sentem incomodados com sua presença. Com sua existência. Sobretudo os professores. A nova professora estava começando a sentir isso. No fundo, o que todos sentem em relação à garotinha é medo. Um estranho medo do existir.

E Ruth permanecia lá, sentada. Calada, com os olhos cravados como dentes, nos olhos da professora. E não piscava. Aliás, não parecia sequer respirar. Pálida, como porcelana. A professora, então, tentou se distrair com algum livro. Uma revista. Um catálogo de cosméticos. Os Classificados. Mas não conseguia se sentir em paz, com aquela presença tão incisiva. E Ruth permanecia lá, sentada. O olhar fincado como um prego, martelando no meio da testa da nova professora, que, já não aguentando mais aquilo, resolveu tentar uma aproximação.

-Oi! O seu nome é Ruth, não é? É o nome da minha avó, sabia?

Ruth não gosta quando insinuam que seu nome é de velha. Apontou uma arma de fogo para a professora, e disparou seis tiros. Um deles atingiu em cheio o olho esquerdo da mulher. Pobre e ingênua proletária. Ruth viu o corpo deslizar devagar até o chão, deixando um rastro vermelho no quadro magnético. A menina, então, segurou seus livros com o braço esquerdo, e subiu em cima da carteira, erguendo, com a mão direita, o isqueiro aceso. Era a Estátua da Liberdade. Cinza. Gigantesca. E o olhar atado ao quadro, a contemplar sua sanguinária obra de arte.

Permaneceu lá, naquela posição, esperando o som da sirene de fim de recreio ressoar pela Instituição.


quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Regina e o Vento

(Por Haroldo França)

Regina caminhava pela calçada, cabisbaixa. Seu andar desengonçado deixava pelo caminho gotas quentes de si. Os raios fulminantes do Sol traziam consigo opressão e violência. Ela continuava a caminhar, destemida. Cabisbaixa e desengonçada; porém, destemida. Já não sabia há quanto tempo estava entregue àquele caminhar. Lentamente, caminhar. De súbito, foi surpreendida por uma corrente de ar gelado, que atravessou seu corpo, a fazendo parar, por um instante, e ouvir, quase dentro de si, um sussurro:

-Por que você anda assim, tão triste, Regina? Eu não entendo...

Fechou os olhos. Sentiu seus poros respirarem, como não sentia há tanto tempo. Quando se pôs a enxergar novamente, viu que o Céu estava sendo tomado por nuvens escuras. A temperatura começou a cair. E ouviu novamente o sopro:

-E se eu cantasse uma canção de ninar pra cidade inteira ouvir? Você se sentiria em paz?

Sentiu o primeiro pingo em si. E a gota desceu sobre sua face como acariciar de mãe. Céu rugiu ferozmente, como leão, intimidando o Sol, os carros e os transeuntes. A cidade inteira se esvaziou. Todos se esconderam, e todas as portas e janelas se fecharam, para que o encontro pudesse acontecer. Regina e o Vento. Vento e a Regina.

-E se eu te beijasse onde você está machucada? E se eu beijasse onde você sente dor? Você se sentiria melhor?

Regina continuou seu caminhar. Mas seus pés já não tocavam o chão. Vento beijava-os, com vigor. E Regina dançou pelos ares. Dançou como louca. Rindo. E as nuvens a levaram consigo para um encontro com as águas de outubro. Era o fim do Verão.

domingo, 24 de outubro de 2010

O filho dos Rebouças

(Por Haroldo França)

O Sol entrando pela janela como o resquício de um sonho. O filho dos Rebouças abriu os olhos devagar. Ouviu o som da campainha. Ding. Dong. E algo que veio de dentro de si o fez sentir vontade de se levantar. Mas ele ficou lá. O som da campainha ainda ecoando. E algo que veio de dentro de si o fez sentir vontade de salivar... E ele ficou lá. Babando no travesseiro. O sol tocando em sua pele. E ele lá, babando no travesseiro. O filho dos Rebouças era distante e nublado, como um sonho. Tinha o céu nos olhos, fechados, comprimidos sobre a nuvem úmida que os acolhiam.


O Sono.

Os coveiros estão ficando presos na máquina! Eles são muito numerosos, e dançam com suas pás entre as engrenagens, fazendo a terra molhada ser lançada contra os ventiladores, e eu os ouço repetirem meu nome, harol-dô, harol-dô, harol-dô-dô-dô- Eu estou colocando as pedras na orelha esquerda, mas com a direita ainda posso ouvir. E vou repetir só mais uma vez: Se eu ouvir mais uma canção gospel, vou cavar até a Babilônia. Quero uma cerveja!


Ding.

Dong.

-Bom dia. Meu nome é Haroldo. Sei como se sente. Eu moro no andar de baixo. Eu ouço você tirando o seu lixo. Eu ouço você com os seus namorados. Eu ouço você com você mesmo, também. Eu ouço você dando descarga na privada. Eu ouço você desligando seus pensamentos. Eu desligo os meus, também. Tem momentos, no meio da noite, que a única coisa que eu ouço é você... e... me desculpe a sinceridade, mas... você não soa legal. Sei lá, você não soa certo. Não soa bom. Eu sempre ouço você desligando seus pensamentos, e fica tudo quieto... Tudo tão quieto! Tão calmo, como uma sirene de polícia checando a nossa vizinhança, esperando que alguma lâmina deslize ou que alguma bala se lance para um golpe final, mas nada acontece. Nada! Nada...


O Sonho.

Os coveiros estão ficando presos na máquina! Eles dançam com suas pás entre as engrenagens! Eu os ouço repetirem meu nome, alfre-dô, arnal-dô, ziral-não!, harol-ah!, não-dô, não-dô! Sim, a lama voa pelos ares, e as pedras invadem os meus ouvidos por ambos os lados, mas eu ainda posso ouvir, ainda posso ouvir, ainda posso ouvi-i-i-i- E se eu ouvir mais uma música sobre anjos, veja bem, veja meu bem, vou repelir pela última vez, eu vou cantar até a Babilônia, e quero minhas cervejas, quero minhas cervejas, quero minhas cervejas now!


O Despertar?

O filho dos Rebouças era distante e nublado, como um sonho. A saliva no travesseiro. E a água escorrendo pela torneira:

Fevrale dostat chernil i plakat
Pisat O Fevrale navsnryd
Poka grohochushaya slyakot
Vesnoyu charnoyu gorit

Eram as lágrimas de Fevereiro, tentando levar embora as manchas negras da primavera.


O Desperdício.