segunda-feira, 22 de março de 2010

Michele

(Por Delianne Lima)

Andava de saltos grandes e barulhentos, parecidos com os pertencentes às madames dos anos 50. Só que ela era excêntrica. Seus passos escorregadios quase a deixavam cair. Seu ritmo confundia-se com dança, apesar de desengonçados. Alguns diziam que tinha cabelos de palha-de-aço. Mas poucos sabiam do enorme cuidado que dedicava às suas madeixas negras.

Não sei dizer o porque, mas Michele me lembrava pinguins. Acho que sei porque, na verdade. Era algo em seu rosto, em seu sorriso. Era engraçada em muitos aspectos. Mas me lembrava pinguins.

sábado, 20 de março de 2010

Sobre Voar

(Por Monique Malcher e Haroldo França)

Em meio a barbitúricos, latinhas, plásticos e todos os 'não quero mais' dos outros, lá estava ele, mais um 'não quero mais', vivo, latente, pessoa.

Suas perninhas eram magras e pareciam ossinhos de galinha em meio a tantos sacos de lixo. Seus olhos eram cheios daquele vazio que se sente quando os pés adormecem. O líquido que saia de suas narinas minúsculas havia secado na pele queimada do rosto. Os ombros eram cheio de mordiscados que sangravam vez ou outra, sua respiração chiava como o rádio de quem procura uma estação tocando Lamento Sertanejo do Gil e as linhas de suas mãos eram tão finas quanto sua chance de sobreviver.

Uma criatura se aproximou. Aquelas penas negras, aquele bico rijo, urubu, foi se aproximando, arisco e curioso. Chegava cada vez mais perto, atraído pelo cheiro de placenta e de sangue. Quando ia tascar o bico feroz, fazendo o que seria convencional, as mãos daquela criaturinha lhe coçaram a barriga. Como um cão bobo, sua cabeça de urubu tombou levemente para a direita, em sentido de admiração. Nesse momento, um novo mundo foi descoberto. Um mundo onde urubus falam e crianças podem voar. Nesse momento, se formava uma família.

Carniça, batizado de cara, tinha então encontrado seu lar.