quinta-feira, 5 de novembro de 2009

O tartarugo

Por Haroldo França

Era uma avó do tipo sanguinária. Uma velha dessas que já devia ter gasto pela vida inteira tudo o que havia de bom em seu espírito. Lembro que quando ela se aproximava, eu já sentia um misto de angústia e medo. Não era respeito: era medo! Eu olhava para cima, e tinha vontade de puxar os bicos de seus peitos para baixo, e me pendurar, até fazê-la gritar!

Uma velha inteiramente dedicada ao suado trabalho de destruir sonhos. Arrancava-os, com as próprias mãos, não importando a quantidade de sangue derramado.

Eu tinha quatro anos. Estava com meus primos, brincando no quintal. Muita areia, resto de barro, algumas mangas caídas, algumas folhas secas, árvores e galinhas, fazendo a festa, com muita sujeira, numa manhã feliz. Eu gostava de correr atrás das galinhas. Era como se elas estivessem brincando, junto comigo. Naquela altura da vida, eu ainda não fazia idéia de que elas corriam para fugir da morte.

Tínhamos um novo amigo: Frederico, o "tartarugo". Ele era mais na dele, meio tímido, parecia um tanto mal-humorado, até. Não entrava muito nas nossas brincadeiras. Mas era tão raro ter um bicho daqueles, tão diferentão, que não tinha como não nutrir por ele um sentimento especial. Nos divertíamos tocando em sua testa, para fazê-lo se esconder dentro do casco. Era a única brincadeira que sabia. Deixamos ele dentro de casa, descansando, enquanto fomos brincar no quintal.

A algazarra toda se interrompeu quando vimos entrar na casa, um homem estranho. Era todo grandão, e tinha a maior cara de mau. Fizemos silêncio, largamos as brincadeiras e fomos espiar pelos vidrinhos que tinham na parede da casa. Haviam duas bacias no chão. A velha as encheu de água. Frederico estava com eles, sem ter para onde nem como escapar. Antes que pudesse fugir para dentro de si mesmo, a faca atravessou seu pescoço. Numa fração de segundos, a janela que estava diante de mim foi tomada por uma mancha vermelha, escura e nojenta. Era como se eu presenciasse a morte de um amigo.

A cabeça foi para uma bacia d'água, e o corpo, para outra. E, com a lardeza de uma tartaruga, assim como uma ferida, que mesmo para uma criança, demora - sim! - para cicatrizar; a morte de Frederico foi terrivelmente lenta. Durante horas, o corpo, jorrando sangue, tentava sobreviver. As patas se movimentavam contra a água. Lentamente. Pausadamente. Durante horas.

No início da tarde, o almoço foi servido. Eu, e as outras crianças, ficamos de luto, e nos recusamos a beber do nosso próprio sangue.

Hoj
e, eu tenho vinte e um anos, e acho que a vida já gastou boa parte do que havia de bom em mim.



(Texto baseado em fragmentos de narrativas de vida pessoal recolhidos pelo grupo Helicóptero de pesquisa em Artes Cênicas)

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