segunda-feira, 16 de março de 2009

Eu, moeda

-Posso saber quanto valem essas belas pernas?

De mão em mão. Centavo. Eu, moeda. Metal, fria, suja, redonda, achatada. Eu, em queda. Desvalorizada. No bolso. Na pele. Na alma. Vendida!

-E essa bundinha gostosa? Quanto custa?

Porta-níquel, pele, cédula, pulsação. Batimento cardíaco na freqüência da bolsa. Passo de mão em mão, aqui, ali, acolá. Sou o desejo inalcançável, sou o trocado, sou a esmola. Rolo pelo ralo, ralo pelo bolso, pelo calor, pelo suor da troca, do lucro, do sonho. Irreal!

-Quinhentos reais, doçura. E nessa noite, pertencerei a ti.

Sou o preço da vida, da saúde. Sou carne, víscera, coração. Sou o tesouro, a vaidade, o presente fora da validade. Sou a fertilidade. Sangue na veia. Esperma no chão. Sangue derramado. Sou a nota fiscal. Amor, conquista, paixão, verdinha, bufunfa! Aos milhares! Aos milhões!

- Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e as traças corroem, onde os ladrões furtam e roubam.

Aluga-se! Aluga-se um sorriso corroído pelas traças. Alugam-se olhos cegos pela ferrugem. Aluga-se um corpo em plena decomposição, a sete palmos debaixo da terra, sem nenhum centavo no bolso!

-Ajuntai para vós tesouros no céu. Porque onde está o teu tesouro, lá também está teu coração!

quinta-feira, 12 de março de 2009

Lóbulo da orelha esquerda

Um lóbulo da orelha esquerda. Um cotonete com a infecção intestinal dos glóbulos brancos da minha pele. Lóbulos, glóbulos. Um cacho de algodão salta pela minha janela. Não de fora pra dentro, mas de dentro pra fora. Algumas folhas bem verdes ainda permanecem ali, o preservando.


Uma música dos anos 80, toca de um vinil invisível. Diz: “coração, é só o que importa. Ênáruê...”. Sinto-me pasma, plácida ao observar aquela subjetividade interessante. O cacho despedaça-se ao meio do vento, ao meio, metade. A música segue em seu segundo minuto seguido. Me irrita. vou desligar, mas era invisível. O vinil tocava em minha mente, conturbando-me. Algo me fazia pensar naquela música, me remetendo à alguma história. Dores terminam a melodia, meu pescoço anseia por estalos, mas esqueci-me como fazê-los.


Intervalo, intermission, pausa, empossado, espaçado. Enquadramento. Foco, luz, ponto principal. Sem foco, sem visão. Embaçado.


Estrela cadente. Tenho três pedidos de cobre. Cobranças de prata, ouro em abundância. Abraços sortidos, amores diversos, promessas quebradas. Decepcionantes como o que esperávamos, esperamos. Como o que sempre há de se esperar. A espera trás algo inóspito às mentes, correlacionando-se com a esperança ínfima no interior de cada um, que tenta, joga e arrisca. A disputa é sempre rala, raspando de canto nos estragos imperfeitos.


Lembrei, agora me lembrei. Vou estalar.


(Delianne Lima)

segunda-feira, 9 de março de 2009

Dente Cravado na Terra

Flores. Detesto flores. Detesto plantas, e qualquer coisa ou criatura que possa criar raízes em algum lugar. Detesto primaveras! Em todas as primaveras, forma-se um imenso jardim, cheio de flores, bem na frente da minha janela! Flores de todas as formas, cheiros, cores e espinhos. Argh, como eu detesto essa fertilidade! Eu não agüento mais! Cada vez que chego perto da janela, e vejo aquele amontoado de plantas coloridas... (ofegante) ah, me sinto tremer, me sinto suar, suar frio. Rosas! Malditas rosas! Não consigo parar de cheirá-las... não consigo parar de comê-las! Calda de seiva na saliva, tempero de pólen na gengiva, pétala viva na língua! Não consigo parar de engoli-las!

Essas desgraçadas são cheias de espinhos dorsais, apontando para todos os lados! Para o jardim, para a janela, para todas as estações do ano! Apontam na minha direção! Parem! Parem de me ameaçar! Vão embora... Deixem a minha paisagem em paz! Saiam daqui! Desçam sete palmos abaixo da terra!

Ontem, eu conheci uma rosa. E era uma rosa diferente das outras. Havia algo de especial. Era como um capricho pagão. Quando senti o seu cheiro, uma embriaguez tomou conta de mim. Me pus a mastigá-la. Ela possuía o sabor da mais criminosa das idolatrias. O néctar desceu pela minha garganta, e arde até hoje aqui dentro.
Ontem, foi do teu mel que provei. O mel da tua rosa. Ela era cor-de-rosa. Era farta, aberta, e cheia de amor. Tinha um fascinante odor, o fedor da mais impura libertinagem.
Eu não falo mais por mim! Quem fala por mim é essa rosa! Me usa, me maltrata, me vicia, me condena!
Sou planta carnívora! Vem te entregar à nudez escancarada de meus dentes... que eu te entrego a minha saliva!
Posso sentir minhas raízes fora do chão! Eu sou mel, e estou es-cor-ren-do!... Me entrega a tua pureza, e mela! Mela! Mela!

Calda de seiva na saliva, tempero de pólen na língua, pétala viva na gengiva! Espinha dorsal na ferida, néctar em carne viva, dente cravado na terra não se tira!
Outono! Outonoooo!