segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Aula de teatro

Por Haroldo França

Dessa vez, a orgia foi um pouco menos romântica. Agora, era chegada a hora de experimentar uma modalidade um pouco diferente: o sado-masoquismo.

Primeiro, começamos com casais, que faziam um sexo furioso, com clima de campo de batalha. Depois, a coisa foi esquentando, e ficou três contra um, no meio da roda. Confesso que eu não estava muito acostumado com essas coisas meio sádicas, mas ainda assim tenho que admitir que foi muito gostoso. O grupo foi se empolgando, era muita gente excitada ao mesmo tempo, e as respirações ficaram cada vez mais ofegantes. Corpos suados no chão rolavam, pulavam, gemiam, gritavam, se enfrentavam e derrubavam uns aos outros, com brutal animalidade, mas ao mesmo tempo, com o carinho e o cuidado de quem se ama. Um arrepio subiu pela espinha, deixando meus pêlos ouriçados. Era o gozo, fruto da intimidade que construímos a cada dia, sussurrando ao ouvido que a qualquer momento poderia pegar a todos de surpresa. Nesse instante, nos tornamos platéia. No meio da sala, restava um casal, brutal, animal, vendaval, homossexual. Cada um de nós se voltou para sua própria intimidade, em busca do prazer, sem se desligar do que estava acontecendo, é claro. Os olhos de cada um estavam vivos, sedentos por cada movimento que acontecia ali. Sedentos por química.

Participar daquilo era como ser coberto de mordidas, do pé até a cabeça. Uma confusa excitação. Uma viagem, da Lua até o Sol. Uma tentativa de equilíbrio entre a Deusa do Amor e o Deus da Guerra, com passos firmes para não cair, e sem perder o foco daquilo que move toda essa paixão: o jogo.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Odete Mateus

Por Delianne Lima

Até hoje não entendo a existência de Odete Mateus. Sinto que alguns cultivavam o hábito de mentir, quando perguntados sobre ela. Não conseguia saber ao certo se existia, ao menos. Parecia fruto de uma imaginação meticulosa.

Tive a sorte de vê-la uma vez. Não era lá minha rotina chegar cedo, mas como golpe do destino, cheguei. A vi sentada naquela grande cadeira preta. Rodava no estofado, enquanto lia algumas anotações deixadas à ela. Pensei que nunca chegariam ao destino. Seus óculos. Ah, estes escorregavam pelo suor de seu nariz arredondado. Um dia me disseram que ela veio do sul, daí a explicação do seu suor habitual: não havia se adaptado ao calor do Norte.

Seu cabelo não emoldurava seu rosto amarelado, pois o tamanho não permitia. Roupas de executiva, contrariando aquele calor efusivo. Sapatos vermelhos. Gostei dos sapatos vermelhos. Odete me remete ao vermelho.

Porém, não vamos perder a linha de raciocínio (como se este pudesse materializar-se em uma simples linha): o trabalho era em um escritório. Meu papel de jornalista resumia-se às vezes no de um simples auxiliar administrativo.

Meu chefe gostava de se sentir chefe. Algo brilhava em seu interior ao ouvir essa palavra. Mas ás vezes mal conseguia falar normalmente. Sua fala rápida, muitas vezes não se permitia entender. Em seus bilhetes, aqueles símbolos estranhos necessitavam de minutos de plena concentração - e vontade - para serem entendidos. Porém, toda aquela pose tinha um motivo: medo. Medo de perder a posse, a pose, a pompa. Odete Mateus era sua grande rival. Rival em vários sentidos, diria. Na política, principalmente. E como o escritório encontrava-se em um local onde a politicagem era tão habitual quanto o café-com-leite, Denis perdia.

Denis não soltava o orgulho, não o deixava de lado em nenhuma ocasião.

No dia em que avistei os sapatos vermelhos de Odete, Denis havia faltado o dia de trabalho. Então, aproveitei para comprar algo bom para comer no intervalo. Enquanto ainda bebericava o resto de café-com-leite que havia comprado, abri a porta do escritório para voltar à labuta. Avistei o grande estofado preto de Odete. Mas havia alguém sentado, que não era Odete. Dei alguns míseros passos até chegar perto. Vi os sapatos vermelhos. Odete estava no chão, do lado do estofado, descalça.

Denis me olhou vitorioso, calçando os sapatos vermelhos.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Assim caminha a humanidade

É legal quando nos detemos a falar de defeitos, de erros, de situações onde as pessoas falham, aí dizemos, é humano. É humano perder o foco da atenção e entregar a energia para as lajotas da sala, as vezes. É humano sentir um leve desiquilíbrio, e até cair, desmontando o corpo de forma cômica. É humano não ter força para aguentar tudo, e se sentir incapaz. É humano ter limites.

Ser animal também é ser humano. Afinal, somos primatas, somos mamíferos, somos artistas. É humano perder o controle sobre si e avançar contra o próximo, destroçando sua carne. É humano não ter limites. É humano ser desumano, as vezes.

Em certas situações, quando estamos no limite da existência, somos humanos, somos vítimas, somos cruéis. Quando falta o ar, quando falta o sangue, ou o fôlego de algo mais íntimo de realização, quando a morte se apresenta... Sentimos o que é ser humano. É desumano.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Dos três

(por Renata C.)


O primeiro:
- Não volto mais, é perda de tempo.
O segundo:
- O caso não é voltar. É preparar-se desde já.
O terceiro:
- Pode ser, mas de mim ninguém escapa.

O primeiro:
- De mim é que fogem.
O segundo:
- Se não parecesses tanto com um fantasma, não precisariam tanto de mim.
O terceiro:
- Besteira! Deixem de 'mim', o fato será sempre eu.

O primeiro:
- Tu? Ah, às vezes lamento por ti, objeto de obsessão.
O segundo:
- Isso é. Até me esquecem!
O terceiro:
- Não te deprimas, tu sabes que sem um o outro não existe.

O primeiro:
- Compraste tabaco?
O segundo:
- Não, não quero. E tu?
O terceiro:
- Não me perguntes nada. Sou o inefável momento da surpresa.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

(Por Haroldo França)

Parecia ser uma punheta como outra qualquer. Deveria ser. Os azulejos da parede do banheiro eram os mesmos de 20 anos atrás. Seus desenhos sugeriam plantas enroscadas umas nas outras; e meus pensamentos se enroscavam nas pernas de Diana. Que pernas! Aliás, que mulher! Era, definitivamente, a mulher mais GOSTOSA que eu já havia visto, nua, diante de mim, assim, ao vivo, em toda a minha vida. E não eram apenas as pernas, mas tudo, tudo nela era lindo! E o fato de ser linda e gostosa não era tudo. Havia o principal: Ela era minha. Só minha. Todinha, da cabeça aos pés, pra mim!

Meus pensamentos não se deliciavam apenas no ato de lamber aos poucos sua pele morena; o gozo também vinha da felicidade advinda do fato de que eu, finalmente, tinha a quem comer! Que maravilha! Minhas mãos gritavam: "Eu sou um homem realizado!". Um pau solitário, acolhido com calor e carinho, numa cova linda e molhada!

E a forma como ela se entregava, ah, Diana! Seria tão perfeito... Tão perfeito se eu a amasse profundamente. Mas naquele dia, precisamente, naquela punheta, minha imaginação masturbativa foi violentamente desviada. O sorriso safado da Diana se dissolveu aos poucos, e, como num rádio mal-sintonizado, fui assombrado pela voz de um fantasma: A ex.

Aos poucos, as plantas dos azulejos cresceram, e, como mil cascavéis, prontas para dar o bote, se enroscaram em mim, num labirinto de treva. Karina não era exatamente gostosa. Nem sabia dar direito. Também tinha uns pneuzinhos, que... bem, eu confesso que gostava disso. Mas tinha uma bunda meio chata, meio quadradona, mas... bom... eu admito que gostava disso também. E aqueles peitinhos pequenininhos, bicudinhos... E aqueles dentes separados na frente, que em qualquer uma ficariam feios, mas no sorriso dela eram tão... Ah, droga! Tem algo nessa mulher, acho que é macumba, que me persegue desde que terminamos, há oito meses! Será que ela nunca vai me deixar em paz? Nem no meu próprio banheiro?

Eu já deveria estar ali ha um bom tempo... pingava de suor, e parecia que o pau se mantia rígido não por excitação, mas por uma angústia confusa e canalha. Os pensamentos se confundiam, eu já não sabia mais em quem pensar, Diana-karina, Karina-diana, a bunda da Diana, a boca da Karina, a buceta da Diana, o boquete da Karina, ai minha Nossa Senhora, era um cruzamento de imagens confusas, tortas, desejáveis, torturadoras, sensuais, quentes, vaginas, mamilos, decotes, Karinas, Dianas e Aaaaahhhhhhhhhhhhh!... A mulher da propaganda de cerveja salvou a gozada.

E a porra jorrou como lágrima, veneno, ácido clorídrico a dissolver o enroscar das plantas, dos sonhos, do amor.

Boas notas!

(Por Haroldo França)

-Eu tenho que tirar 9 nessa prova! Ou vou acabar repetindo de ano... Por que a gente tem que se preocupar tanto com as notas, hem?

-Bom, acho que o propósito de ir à escola é tirar boas notas. Então, quando a gente entrar no convênio, onde o propósito é estudar bastante, a gente tira boas notas e passa no vestibular. E o propósito de passar no vestibular é tirar boas notas na faculdade, pra se formar e poder fazer a pós-graduação. E o propósito disso é se dedicar muito para tirar boas notas! Assim, você pode conseguir um emprego e ter sucesso, e daí você pode se casar. E ter filhos para mandá-los à escola pra tirar boas notas. E assim, eles vão pro convênio pra tirar boas notas pra irem pra faculdade e estudarem muito...

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Em nome do desabafo.

(Por Haroldo França)

Seus dedos são sempre inquietos. Sempre em busca de algo, seja uma tecla de computador, ou um fio de cabelo - seja do corpo ou da cabeça. Os fios de cabelo inundavam sua vida. Cresciam pelas paredes, e não adiantava mais cortá-los. Eles ressurgiam, envolvendo sua cama enquanto dormia, na tentativa de sufocá-lo. Os fios de cabelo o impediam de fechar as janelas. Estavam em suas roupas, em seus livros, em todo o lugar eles apareciam. Tentou, então, agradá-los. Deu um banho de xampu, na casa toda. Sentiu gosto de sabão na boca, e vomitou. Vomitou bolas e bolas de cabelo empapado de ácido gástrico. Tentou conviver com isso. Ia pra escola, pegava ônibus, e por onde passava, os fios de cabelo ameaçavam sair pelos esgotos ou pelas tubulações de ar. Mas sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria de voltar pra casa. E todos os dias, era uma tentativa de homicídio. Como conviver com isso? Como receberia visitas em casa? A situação foi tomando contornos cada vez mais angustiantes. Foi quando decidiu: Clínica de depilação. Custaria caro, mas o faria, para salvar o que lhe restava de vida. Foi então que suas unhas começaram a crescer numa velocidade anormal. Sbia pelas paredes enquanto exclamavam ouvidos afora o quão inflamável poderia ser uma simpática adestrada e inquieta vizinha, flamejante, explosiva, temperatura, termômetro, vento ao vento. E assim, sem mais nem menos, deu-se ao encontro de seus pensamentos no ato de escrever o quão cruel poderia ser essa insaciante, infinita e sufocante busca pelo amar, pelo amor, e pelo relacionar-se. Opção? Sabia muito bem que não poderia sê-lo. Não poderia sê-lo! Era destino cravado. Como dente de jacaré, mandíbuila, afiada, vertical, na carne, estaria, no sangue, na alma. Não sairia. Não sairia. Não sairia. Não sairia. E a cada vez que se tocava disso, era como se um novo fio de cabelo nascesse, contornasse seu pescoço e o sufocasse. o sufocasse. o sufocasse. E Escorreu! Escorrendo foi até encontrar com sua grande paixão, aquele morto sentimento de se tornar avesso a tudo o que desafia o equilíbrio na vida. E quando essa inquietação exagera, se aproxima de angústia. E que angústia é essa, tão cabeluda, de garras tao grandes, que não deix ao pobre coitado dormir? Seria humana? O palpite que qualquer ser humano poderia mencionar é o de que abóboras são feitas para serem espatifadas, desperdiçadas, e seu suco deve ser absorvido pela terra, pelos mortos, pelos micróbios, para que um dia uma manga seja digerida e nela existam milhares de sentimentos universais, que passam pelas veias de todo ser humano, que não se permitem exalar-se ou multiplicar-se em sete partes. Ou será que poderia? Eu já havia dito, certa vez, que um não é o que é aquilo que se merece ser dado ao dízimo, e amadas são as vidas outroras tão coisas escalafobéticas e verbo, verbo, verborragia desce, escorre e planta na alma um sentimento profundo de inquietude, evasão, fuga, sentimentos que explodem a flor da pele, a flor, a pele, a planta, a raiz envenenada do ser que é careca, calvo de viver, um fio de vida que se rompe enrolado no dedo e leva a morte condensada num líquido que escorre pela língua e leva a crer que tu nada mais é que um objetivo inconcreto, inalcansável, praticante herdeiro de genes híbridos que um dia darão frutos a jardins encantados na Eutanásia, o lugar de onde todos aqueles malditos fios de cabelo nunca deveriam ter saído. Eles percorrem as ruas e alcançam o surreal, o inexplicável da existência humana, do relacionar, do comunicar e dizer sempre e sempre e sempre tudo o que menos importar e dizer que na verdade o que se é não importa, o que importa é apenas aquele maldito fio de cabelo que se arranca da cabeça, o que importa é finalmente a maldita dor que eu sinto a três dias, e a necessidade de manter meus dedos ocupados, falando, comunicando, teclando, para que não retornem à minha cabeça e me façam crer que perecerei, e não terei a vida eterna.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Eco

(Por Leandro Oliveira)

Insistir. A força me movia lentamente, levemente e da forma mais intensa que poderia mover. Intensamente.
As perguntas apareciam e me diziam para ter certeza e cuidado, que nada iria acontecer e que aquela cara de bichinho acuado era coisa do passado. Balela. Eu não sou nada daquilo que tenho potencial para ser e todos sabiam disso. E ninguém me dizia nada. E o nada, absoluto se tornou. Frígido, horrendo, ridículo.

- Definitivamente você já foi mais interessante.

(ecoou, ecoou, ecoou)

E agora o insistir, meu Deus, se tornou um sofrimento lastimável.
Fama, fortuna, façanhas e maravilhosas idolatrias, todas deixadas para trás.

- É hora de levantar e gritar: Fudeu!

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Melhor Blog?

Estamos concorrendo ao título de "Melhor Blog Paraense", na categoria ficção, no Blogueiros Paraenses.

Vote, clicando aqui!

Helicóptero!

Por Haroldo França

(Texto para cena, a ser feita por um ator com antenas na cabeça. Podem ser antenas de inseto, de televisão, de chapolin, etc.)


Eu acredito em seres encantados que nos visitam enquanto dormimos. Eu sei, e posso provar. São de três tipos: os duendes, as fadas, e os helicópteros. Eles são muito pequeninos, e estão em todos os lugares, disfarçados de carapanãs. Sim! Esses danados! Mas agora já os descobri: São ladrões de lembranças. É, te juro! Quando caímos no sono, eles se aproximam, e, depois de se certificarem de que não estamos fingindo e que estamos realmente dormindo, começam a pôr seus planos em ação. Tiram suas fantasias de carapanã com um ziper secreto que têm na barriga, e se preparam para começar o trabalho.

Cada um desses seres encantados tem preferência por um tipo de pessoa: Quando tudo já está preparado para o bote, eles se organizam em linhas de ação: os duendes seguem por via terrestre, e escalam os indivíduos até penetrarem por seus ouvidos. As fadas, aladas, têm uma preferência maior pelas narinas. Já os helicópteros se restringem apenas àqueles que dormem de boca aberta, invadindo garganta adentro.

Eu sou do tipo que dorme de boca aberta. ¬¬

Durante toda a minha vida, fui surpreendido por momentos em que o sono parece roubar, violentamente, das minhas mãos, e da minha mente, descobertas íntimas sobre a minha própria existência. Muitas vezes me senti traído, violado, como se alguém tivesse aberto a minha cabeça durante o sono e tivesse me roubado alguma lembrança preciosa. Hoje eu sei! São eles! Os helicópteros! Os desgraçados entraram na minha cabeça, e tiraram do meu cérebro as lembranças!

Tá olhando o que? Eu tenho provas, tá? As minhas suspeitas começaram há mais ou menos quinze anos atrás. Foi em um sonho...

Eu era criança, e no pátio de casa, minha cadela Punky ainda lembrava uma pulguinha saltitante e feliz. Era uma manhã comum de sábado, e surgiu, na frente da minha casa, um senhor feliz, com um carrinho, desses de carregar cimento, com uma televisão vermelha em cima. Eu abri o portão, subi no carrinho, e fiquei assistindo a televisão vermelha, enquanto o senhor levava o carrinho, com eu e a tv dentro, pra passear.

Isso era uma coisa tão comum... eu já via aquela TV vermelha, e aquele senhor há muito, muuuuito tempo. E passear vendo TV num carrinho de cimento pelas ruas do conjunto onde morava era super normal! De repente, percebi que estava prestes a voar! Mas aí, bum! Quando vi, estava acordando de mais um sonho. Hunf! Desgraçados! Senti a vida se virando violentamente contra mim, e me virando de cabeça pra baixo, sacudindo até fazer essa lembrança cair, como uma moeda. De repente, o destino vira pra mim e me diz: "sabe aquela televisão, aquilo que é tão comum e verdadeiro pra ti, e pra tua vida? Pois é: foi só um produto da tua imaginação fértil! Um sonho besta, que durou alguns minutinhos bestas, que nunca vão voltar. NUNCA! Ouviu bem?"

Durante quinze anos, eu carreguei comigo essa neura. Eu sempre tive a certeza de que a televisão vermelha existe, e que o velhinho do carro de cimento está levando crianças por aí pra passear, até hoje! Mas foi na noite de ontem, que eu tive a grande descoberta.

Na noite de ontem, eu tive um sonho. Sonhei que estava, novamente, no pátio da minha casa, numa manhã comum de sábado. Só que agora eu já tinha barba, e a minha cadela já carregava um caranguejo preto embaixo do rabo. Era estranho, porque o sol brilhava, mas havia um silêncio profundo e pleno. Ouvi o som de Beatles, tocando, bem longe. Era She Loves You. Curioso, abri o portão, e resolvi seguir esse som. Quando pus os pés na rua, vi, bem de longe, uma silhueta inconfundível. Era ele! O velho com o carrinho de cimento com a televisão vermelha em cima! E, cara, tava passando Beatles! Imediatamente, corri, com todas as forças que tinha. Simplesmente corri, e o silêncio cedeu lugar para a batida da música da TV em compasso com meus passos nervosos e minha respiração ofegante. O meu corpo atravessou o vento numa velocidade incrível, em busca da minha verdade, que eu sempre soube que ninguém poderia me tirar. O som do vento, da minha respiração, da TV e de uma vida inteira se passando entre um ouvido e outro cresceu tanto a ponto de se tornar um barulho ensurdecedor. O vento ficou cada vez mais forte, e, quando percebi, por trás do muro apareceu ele: o Helicóptero! Era gigantesco. Um foco de luz se acendeu sobre o velho com o carrinho. Imediatamente, um enxame de carapanãs surgiu de dentro dos esgotos, até formarem uma imensa nuvem preta, e eram tantas, que levantaram o carrinho com o velho e a TV dentro. Sumiram por trás das nuvens, num piscar de olhos.

Percebi, então, que os malditos deixaram cair algo fundamental: A antena. De repente, o céu começou a entrar em interferência, como uma TV mal sintonizada. Percebi: Eu estava prestes a acordar. Sem pensar duas vezes, me atirei no chão empoeirado, e me agarrei, com todas as forças, naquela antena.

(A partir daqui, ator vai colocando pedaços de palha de aço nas pontas das antenas)

Quando acordei, levantei de sobressalto, e fui me olhar no espelho. Foi quando eu tive plena certeza. É isso. Isso mesmo. Agora tudo faz sentido.

O tartarugo

Por Haroldo França

Era uma avó do tipo sanguinária. Uma velha dessas que já devia ter gasto pela vida inteira tudo o que havia de bom em seu espírito. Lembro que quando ela se aproximava, eu já sentia um misto de angústia e medo. Não era respeito: era medo! Eu olhava para cima, e tinha vontade de puxar os bicos de seus peitos para baixo, e me pendurar, até fazê-la gritar!

Uma velha inteiramente dedicada ao suado trabalho de destruir sonhos. Arrancava-os, com as próprias mãos, não importando a quantidade de sangue derramado.

Eu tinha quatro anos. Estava com meus primos, brincando no quintal. Muita areia, resto de barro, algumas mangas caídas, algumas folhas secas, árvores e galinhas, fazendo a festa, com muita sujeira, numa manhã feliz. Eu gostava de correr atrás das galinhas. Era como se elas estivessem brincando, junto comigo. Naquela altura da vida, eu ainda não fazia idéia de que elas corriam para fugir da morte.

Tínhamos um novo amigo: Frederico, o "tartarugo". Ele era mais na dele, meio tímido, parecia um tanto mal-humorado, até. Não entrava muito nas nossas brincadeiras. Mas era tão raro ter um bicho daqueles, tão diferentão, que não tinha como não nutrir por ele um sentimento especial. Nos divertíamos tocando em sua testa, para fazê-lo se esconder dentro do casco. Era a única brincadeira que sabia. Deixamos ele dentro de casa, descansando, enquanto fomos brincar no quintal.

A algazarra toda se interrompeu quando vimos entrar na casa, um homem estranho. Era todo grandão, e tinha a maior cara de mau. Fizemos silêncio, largamos as brincadeiras e fomos espiar pelos vidrinhos que tinham na parede da casa. Haviam duas bacias no chão. A velha as encheu de água. Frederico estava com eles, sem ter para onde nem como escapar. Antes que pudesse fugir para dentro de si mesmo, a faca atravessou seu pescoço. Numa fração de segundos, a janela que estava diante de mim foi tomada por uma mancha vermelha, escura e nojenta. Era como se eu presenciasse a morte de um amigo.

A cabeça foi para uma bacia d'água, e o corpo, para outra. E, com a lardeza de uma tartaruga, assim como uma ferida, que mesmo para uma criança, demora - sim! - para cicatrizar; a morte de Frederico foi terrivelmente lenta. Durante horas, o corpo, jorrando sangue, tentava sobreviver. As patas se movimentavam contra a água. Lentamente. Pausadamente. Durante horas.

No início da tarde, o almoço foi servido. Eu, e as outras crianças, ficamos de luto, e nos recusamos a beber do nosso próprio sangue.

Hoj
e, eu tenho vinte e um anos, e acho que a vida já gastou boa parte do que havia de bom em mim.



(Texto baseado em fragmentos de narrativas de vida pessoal recolhidos pelo grupo Helicóptero de pesquisa em Artes Cênicas)

sábado, 17 de outubro de 2009

A náufraga

Por Haroldo França

Sim, sim... é verdade. Fazem tantos anos (riu-se timidamente. Seus dedos foram ao rosto, seguidos de um silêncio adulto, em uma expressão riscada pelo vago sabor de muitas vivências)... Foi quando eu trabalhava na Marinha.

Ela ralhava com a gente, profanando palavrões que saíam de sua boca como plumas adocicadas. E não era nem questão de ser sensual, era questão de ser tão tchucurucurutchuza!
(Autor desconhecido, sobre ela, que conheço bem)

Estávamos, toda a trupilação - mais unida que nunca! - navegando em um mar de livros. Corria um boato de que esses livros contavam histórias de grandes heróis da guerra. Mas nunca pude ler nenhum deles. Nenhum de nós sabia ler. O capitão sempre tentava convencer-nos de que eram livros hereges, que conspiravam contra os ideais inquestionáveis da nação. Era perceptível que o capitão tinha muito medo de que algum de nós tomasse conhecimento dos escritos.

Nesse dia, o mar estava muito turbulento. Os livros ameaçavam nos engolir. A tripulação estava inquieta, num certo misto de medo e excitação. Quando olhamos para o capitão, ele usava uma peruca de cor avermelhada, que o deixou levemente parecido com a Rita Lee (cantora). Tentava nos acalmar, lembrando-nos de que estávamos servidos de um excelente serviço de bordo, com muito festim diabólico, rum, moloko, e mulheres sem pêlos pubianos.

(Apesar do serviço de bordo sempre muito farto, não tinha como não reparar na cara de paisagem das pessoas... era uma paisagem tão azul, vazia, sem esperanças de terra à vista... Um horizonte no qual o sol de todos já havia se escondido há muito tempo. Éramos tripulantes sem ânimo, sem fôlego, sem escrúpulos e, o pior de tudo, sem desodorantes)

-Ê, galere, que cara de desânimo é essa? Deixem de melindres, e vamos logo bater essa cerveja na foto do copo! - Exclamava o capitão, tentando nos acalmar, disque! Mas um silêncio constrangedor tomou conta de todo o navio... Até o vento parou de soprar, até os heróis dos livros se acalmaram, até as comissárias de bordo pararam de gemer, para contemplar o som monótono do ranger da madeira do Atalante (Tomei um susto! Permita-me explicar... Atalante era o nome do navio. É que acontecia o seguinte: não me pergunte o porquê, mas toda vez que esse nome era proferido, os tripulantes ao redor eram tomados por uma incontrolável taquicardia, e se punham a correr para todos os lados até se acalmarem).

O constrangimento foi tão intenso, e, acima de tudo, TÃO frustrante... afinal, o que todo mundo queria, de fato, ali, era uma nova aventura! O desânimo foi tal, que todos se retiraram para seus dormitórios. Nesse momento permiti a mim mesmo ficar na proa, deixar de ser marujo raso, e contemplar a imensidão literária do oceano. Foi quando vi um brilho diferente no horizonte. Imediatamente, gritei: "homem ao mar!", e toda a tripulação, ávida por aventura, ávida por algo novo, clamando por emoções externas, repleta de uma PUTA felicidade (e não o contrário) se movimentou na busca do brilho que vinha de longe. Jogamos uma rede, e capturamos o elemento. Era nada mais nada menos que um imenso pote de vidro. Todos estavam muito assustados, e curiosos, para saber que diabos era aquilo. O vidro estava embaçado, e, dentro dele, algo parecia se mexer (suspiro). Ah! Era ela!

Lembro com muito carinho até hoje (suas mãos enrugadas se fecharam entre suas finas e trêmulas pernas, recebendo o sopro de uma respiração carregada de nostalgia e sentimentos). Guardo o pote em minha cabeceira, e todas as manhãs, no raiar do sol, retiro a tampa, e ouço a sua voz como um sopro suave da brisa do mar:

-Você-é-trassshhh!

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

No limite do azul

Por Leandro Oliveira

E dentro desse tempo era azul, um bonito azul limiar, limite do azul.
Entender esse azul é belo e pleno, mas não passava de um azul.
E qual o problema com azul?
Nenhum, é somente o seu absolutismo que me preocupou durante esse tempo inteiro.
Faltou amarelo, verde, turquesa, e mais uma tela inteira de cores diversas. E o vermelho, logicamente.
Ah, o vermelho que eu (re) descubro agora, que é bom, é pleno, é gostoso, ai, uhn, ui... Oh!
(Ai, vergonha)
Voltemos ao lindo azul de meus melhores sentimentos por ti, que são plenos, tensos e maravilhosamente azuis cor de céu, nuvem, sorvete de chiclete e drink de barzinho de rua. E que é tão tão tão feliz de ser somente azul e se redescobrir como tal.
Agora é momento de partir para a alegre tristeza do arco-íris mundano.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

(des) esperança.

Por Delianne Lima

Como a mudança é grande, contingente, estridente. O nada não é o mesmo. Mensagens cítricas misturam-se na realidade nada adocicada do comum. Comumente, naturalmente.

Racismo, autoritarismo, preconceito e, sobretudo, o cinismo em namoro fátuo com a sinceridade.

Verdade. Fato. Igual, diferente, muda. A palavra, acima de tudo. Faca. Costumam chamá-la de faca. De dois gumes, talvez. Quem sabe.

Lágrimas de vento contra sentimentos recheados de uma grande variedade de ventanias e trovões. Tempestades às cabeças.

Sou forte. Forte como lágrima ao cair, despedaçando a confiança, o amor, envolvimento. Lá se foi, se vai a angústia de mãos dadas com a (des) esperança.

sábado, 12 de setembro de 2009

Folia

Por Haroldo França

As pessoas pareciam se divertir. Eu estava na fila, de cabeça baixa, observando os tênis... E indagava qual o motivo de meus pés terem me levado até ali. Diversão? As pessoas não pareciam se divertir.

E a imagem dos pés ficou úmida, embaçada. E os cadarços que me prendiam até então foram se desamarrando dolorosamente. E uma luz invadiu o meu coração, e me desmoronou.

Essa luz me fez arriscar, e andar descalço nessas ruas quase desertas do divertir-se.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Macaca

Por Delianne Lima


Passos estranhos de uma ruiva de farmácia. Não era loira oxigenada, seria pior. Tinha um quê de fantástico naqueles gestos. “Uma macaca, parece” – pensei. Do mesmo jeito quis chegar mais perto, quem sabe. Quase que automaticamente me pus a observá-la de maneira contínua. Percebendo, me retornou os olhares sorridentes. O suor demonstrava o prazer que sentia ao dançar seus passos que chegavam ao calor do bizarro.

Gostei de olhar, sentir aquela alegria de um forró dançante e ruim. “Ela gosta”, meus pensamentos fluíam como a cerveja em minha garganta. Era suave. Nem forte, nem fraco: suave. Chegou perto, convidando-me a entrar em sua dança excêntrica. Senti vontade de dividir aquela alegria e entrei nos movimentos. Agora eram duas macacas, felizes. Ela, vinda do Pernambuco, com seus traços de plástica e anos de vida. Eu, belenense de raiz, mas com faces italianas e portuguesas. Sangues holandeses, negros e indígenas misturados em um só indivíduo. Completamente brasileira, diria eu.

Observando-a, sentia como se tivesse perdido o dom da dança – no que eu costumava me destacar. Os passos chegavam ao obsceno-ridículo, convidando-me a remexer meus quadris como ela. Como estava ali de passagem, sem me preocupar com maiores fatores, resolvi entrar no seu ritual particular. Algo de belo era mesclado com a estranheza grandiosa do momento.

Meus ouvidos já reagiam com sorrisos às melodias desafinadas com batidas irritantes. “Vamos, assim. Isso, desse jeito!”, dizia a ruiva. “Vou ao banheiro”, completou com um olhar fulminante e convidativo.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Líquido

Por Haroldo França

Era um pingo de gente, deslizando numa correnteza fortíssima de gente em direção ao agora. Desaguam na contemplação do tempo presente, e do caro consumo da quantidade. Era um pingo de gente. Todos falavam, falava, falavam, e o conteúdo não importava (tinham plugs no lugar de órgãos genitais; assim poderiam fazer o verdadeiro "sexo seguro", no qual seria possível a mera conexão sem sentimentalismos ou o risco da desilusão amorosa). Pingos de gente. E entre eles, surgia um, surgia ela. A gota. O que a fazia diferente dos outros? Não era apesas o estilo musical, ou suas roupas, ou sua beleza física, tampouco a inteligência. Era inexplicável. O que fazia essa gota ser "alguém" era uma conexão mais profunda e espiritual do que a almejada pela massa. É a sensação de estar com alguém especial, com quem se construiu alguma coisa, que significa alguma coisa. O que faz alguém na multidão se tornar "alguém", de fato, com quem você se importaria além de você mesmo no caso de uma catástrofe que pusesse em perigo a vida de todos; não é mera afinidade. É amor.

domingo, 30 de agosto de 2009

Nuvem de papel

Aquela velha nuvem de papel. Estava ali o tempo todo. O tempo todo. Ela queria chover, pra que alguém fizesse valer sua presença ali. Pra que alguém a percebesse. Queria chover em mim, para que eu, com frio, tomasse coragem, e a procurasse pelo céu. E diria;

-Minha pequena nuvem, deixa eu escrever em ti o desenho do meu sonho mais distante...

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Ritualístico

- Você está proibido de me ter por trás em plena rua!

Hahaha. Ridículo. Anarquizante. Axí, porcaria!

- Sou hetero, porra!

- Heterozigoto querido! E essa coisa de sexualidade vai muito da falta de pós-modernidade, coisa de gente covarde!

- Pra quê? Tá doida, travesti?
(ê)

Tem motivo? Tem razão? Tem espada?
Vamos deliberar sobre este assunto.

- La breja, por favor! E que nunca falte!

(amém)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Dons

Suprimidos gritos desafogados, suplicando carências de água oxigenada nos cabelos de Virgínia. Assim era Mafalda, escalafobética, consumidora de Brasis, Argentinas, e muita sofreguidão. Mas a vida é moinho. Mascando. Mascando Virgínia. E os jornais, todos, não cansavam de mastigar sua vida: Ela vai se casar. Assim era Virgínia. Sua vida na morte.

Virgínia amava Mafalda. Ela lembra. Lembra que tudo mudou. A donzela casou. O menino morreu. O beijo arriou, o toque escureceu, a dança virou coreografia. Pura marcação, sem sentir.

-Sente que aqui, em meu enredo, o que pulsa é a vitalidade do existir.

-Lembra que aqui dentro moram os teus moinhos de ventos, quardados numa câmera em minha cabeça.

-Mas tua vida não é mais do que espera, e teu corpo não é mais que areia?

-É tarde demais. O projétil voltou. O feitiço se virou contra mim.


Bumerangue tascar na TV, vai quebrar a tela... Que triste caminho.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Membros pragmáticos

Por Delianne Lima

Preocupação versus saudade dionisíaca. O elo entre ela e ele, ele e ela. Violinos, vinhos. Desencantos, sentimentos. Peitos na batida frenética e documental. Palavras ditas ao nada e, ao nada, retornadas. Descompassadas, descobiçadas. Transtorno, dispersão.

Garganta contornando a voz irritada em forma de gritos e gracejos perturbados. Plug in me, baby. Forget me, baby. Don’t ask me, baby. ‘Cause I just wanna listen your voice, baby.

Omissões de omissões da mais amada das mentirosas. Tudo errado, falso, é o que nos prende. Elos diabólicos, algemas desgraçadas. Dente cravado na terra não se tira. Sorriso disfarçado de olhar apaixonado. Mentira. Abraço cálido, garras nas costas. Traição. Beijo envolvente de espingardas. Acidez instantânea. Um segundo, prisão eterna.

Lembrança sem memórias verdadeiras. Histórias, imaginação. Distância sem resposta imediata. Imediatismo sem palavras. Incomunicável. Dor, dolorosa, dorsal. Saliente. Cervejas na beira de um bar na esquina da escuridão. Me deixe sozinha. Sozinha, só. Me deixa só. Moscas esverdeadas de solidão inimaginável. Preto, escuro da alma. Negritude. Coração carimbado.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Viajar

Era só eu e a Lua, ali. Contemplava a distância que nos separava de forma tão preenchedora...

É em pequenos momentos como esse que a vida se mostra reveladora, e ao mesmo tempo, misteriosa. Diante de mim, havia um rio, uma superfície, apenas uma superfície, que escondia um universo cultural de encantarias, narrativas e ser humano.

(Me lembrei de uma amiga que dizia que, ao olhar pras estrelas no céu, ficava imaginando alguém, na estrela, olhando para nós. Do ponto de vista desse observador, nós somos tão insignificantes, que o nosso planeta, que é tão cheio de fluxos e histórias de vida, pode ser um pontinho no céu. O que essa contastação muda na minha vida? Sei lá)

Mas um elemento passou entre mim e a Lua, no meio dessa nossa conversa. Era um avião no céu. Então, passei a exercitar uma certa sensibilidade no olhar... Percebi o quanto uma viagem de avião pode ser significativa pra alguém, porque é sempre uma mudança de estado, de ambiente, de vida... E o avião ficou lá no céu, diminuindo, diminuindo, até virar um pontinho tão menor que uma estrela.

Lembro muito bem. Era enquanto todos se divertiam. Me afastei, e sentei naquele trapiche. Fiquei por lá um bom tempo... os barcos passavam, lentos, e me provocavam medo e fascínio. Em plena madrugada, pessoas remando, em diversas direções.... Ficava pensando qual o destino de cada uma delas. De repente, dei de cara com um homem, que remava muito, muito próximo do trapiche. Mas ele passou direto, sem me olhar, como uma assombração.

E é aquela mesma liga, sabe? De ficar contemplando o quão pequeno se é, diante do desconhecido do futuro, e das pessoas que passam por nós. Foi aí que veio o avião. Luz pairando no céu, despreocupada com os dramas pessoais de quem a vê no caminho, ou com a existência daquelas pessoas, navegando tão devagar no meio da escuridão. Uma luz cujo brilho vai diminuindo, diminuindo, lentamente, pra brilhar cada vez mais distante, até sumir do campo de visão.

Percebi o quanto uma viagem de avião pode ser significativa pra mim, porque é sempre uma mudança de estado, de ambiente, de vida... E o rio foi, diminuindo, diminuindo, lá embaixo, até virar um pontinho tão menor que uma estrela.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

C'est fini.

“Vai beber água pra engolir o choro” – diz ela. Não suportando, sigo seu comando. Realmente ajuda a aliviar o conflito entre meus olhos e a infeliz água salubre. Insuportável, não dá. Não é possível. Drama? Aos caralhos com o drama. Este quem sente sou eu, somente. Nem tente, pois só eu o sinto na pele.

Tenho paciência, tenho limites. Tenho paciência com limites, e estes já se esgotaram. Não há mais tentativa de placidez, apenas a raiva. Há raiva, desgosto. Novecentos não é nada. Isso não se faz necessário, preciso de tempo, segundos, minutos, semanas. Meses. Solidão, encontro comigo mesma.

Sociedade estúpida, ignóbia. O pensamento chega na esquina, porém nunca passa dali. Continua conversando e cantarolando com o padeiro e o barbeiro, que afogam seus infinitos minutos da hora de almoço. C’est fini. Acabado.

Gotas de chuva amaciam o asfalto, contrapondo sorrisos das plantas e gritos cheios de buzinas dos motoristas. O pensamento parou, está no engarrafamento. Não sai dali. Está atrasado, mas não consegue se mexer. “Eterno esse engarrafamento” – dizem aqueles que estão (in)compreensivelmente estagnados na mesma compreensão de mundo.

Não quero ler o jornal, cansei de sangue, besteiras diversificadas. Meus olhos já não conseguem observar tamanha deturpação de dados. Escapatória? Não há. Ah sim, a irresponsabilidade, vontade e necessidade de fuga repentina e rápida.

Grampos, pregos e relâmpagos. Galápagos. Intactos e estragados, como sempre há de ser.

(Delianne Lima)

Tu, tu, tu, tu.

Como se nunca antes houvesse existido. A tua voz, vazia, não me remetia à nada. Vazio. Expoente. Voz estranha, timbre confundível. Não parecia tu, não parecia minha fantasia, meus fantasmas escuros. Desprendi-me. Não tenho mais nenhum contato com aquelas antigas correntes que fortemente me prendiam a ti. Não és tu. Não mais.

Como se fosse alma, como se fosse lembrança. Apenas na minha memória passaste a existir. Hoje és estranheza pura. Não há mais saudade, não há mais físico. Não me chamas como antes. Não há chama.

Desenvoltamente me desloco de teus braços. Tua voz. Teu timbre. Há distância agora no teu timbre. Não me sinto abraçada nas tuas falas. São vozes estranhas, abertas, fechadas.

Não te conheço.

(Delianne Lima)

segunda-feira, 16 de março de 2009

Eu, moeda

-Posso saber quanto valem essas belas pernas?

De mão em mão. Centavo. Eu, moeda. Metal, fria, suja, redonda, achatada. Eu, em queda. Desvalorizada. No bolso. Na pele. Na alma. Vendida!

-E essa bundinha gostosa? Quanto custa?

Porta-níquel, pele, cédula, pulsação. Batimento cardíaco na freqüência da bolsa. Passo de mão em mão, aqui, ali, acolá. Sou o desejo inalcançável, sou o trocado, sou a esmola. Rolo pelo ralo, ralo pelo bolso, pelo calor, pelo suor da troca, do lucro, do sonho. Irreal!

-Quinhentos reais, doçura. E nessa noite, pertencerei a ti.

Sou o preço da vida, da saúde. Sou carne, víscera, coração. Sou o tesouro, a vaidade, o presente fora da validade. Sou a fertilidade. Sangue na veia. Esperma no chão. Sangue derramado. Sou a nota fiscal. Amor, conquista, paixão, verdinha, bufunfa! Aos milhares! Aos milhões!

- Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e as traças corroem, onde os ladrões furtam e roubam.

Aluga-se! Aluga-se um sorriso corroído pelas traças. Alugam-se olhos cegos pela ferrugem. Aluga-se um corpo em plena decomposição, a sete palmos debaixo da terra, sem nenhum centavo no bolso!

-Ajuntai para vós tesouros no céu. Porque onde está o teu tesouro, lá também está teu coração!

quinta-feira, 12 de março de 2009

Lóbulo da orelha esquerda

Um lóbulo da orelha esquerda. Um cotonete com a infecção intestinal dos glóbulos brancos da minha pele. Lóbulos, glóbulos. Um cacho de algodão salta pela minha janela. Não de fora pra dentro, mas de dentro pra fora. Algumas folhas bem verdes ainda permanecem ali, o preservando.


Uma música dos anos 80, toca de um vinil invisível. Diz: “coração, é só o que importa. Ênáruê...”. Sinto-me pasma, plácida ao observar aquela subjetividade interessante. O cacho despedaça-se ao meio do vento, ao meio, metade. A música segue em seu segundo minuto seguido. Me irrita. vou desligar, mas era invisível. O vinil tocava em minha mente, conturbando-me. Algo me fazia pensar naquela música, me remetendo à alguma história. Dores terminam a melodia, meu pescoço anseia por estalos, mas esqueci-me como fazê-los.


Intervalo, intermission, pausa, empossado, espaçado. Enquadramento. Foco, luz, ponto principal. Sem foco, sem visão. Embaçado.


Estrela cadente. Tenho três pedidos de cobre. Cobranças de prata, ouro em abundância. Abraços sortidos, amores diversos, promessas quebradas. Decepcionantes como o que esperávamos, esperamos. Como o que sempre há de se esperar. A espera trás algo inóspito às mentes, correlacionando-se com a esperança ínfima no interior de cada um, que tenta, joga e arrisca. A disputa é sempre rala, raspando de canto nos estragos imperfeitos.


Lembrei, agora me lembrei. Vou estalar.


(Delianne Lima)

segunda-feira, 9 de março de 2009

Dente Cravado na Terra

Flores. Detesto flores. Detesto plantas, e qualquer coisa ou criatura que possa criar raízes em algum lugar. Detesto primaveras! Em todas as primaveras, forma-se um imenso jardim, cheio de flores, bem na frente da minha janela! Flores de todas as formas, cheiros, cores e espinhos. Argh, como eu detesto essa fertilidade! Eu não agüento mais! Cada vez que chego perto da janela, e vejo aquele amontoado de plantas coloridas... (ofegante) ah, me sinto tremer, me sinto suar, suar frio. Rosas! Malditas rosas! Não consigo parar de cheirá-las... não consigo parar de comê-las! Calda de seiva na saliva, tempero de pólen na gengiva, pétala viva na língua! Não consigo parar de engoli-las!

Essas desgraçadas são cheias de espinhos dorsais, apontando para todos os lados! Para o jardim, para a janela, para todas as estações do ano! Apontam na minha direção! Parem! Parem de me ameaçar! Vão embora... Deixem a minha paisagem em paz! Saiam daqui! Desçam sete palmos abaixo da terra!

Ontem, eu conheci uma rosa. E era uma rosa diferente das outras. Havia algo de especial. Era como um capricho pagão. Quando senti o seu cheiro, uma embriaguez tomou conta de mim. Me pus a mastigá-la. Ela possuía o sabor da mais criminosa das idolatrias. O néctar desceu pela minha garganta, e arde até hoje aqui dentro.
Ontem, foi do teu mel que provei. O mel da tua rosa. Ela era cor-de-rosa. Era farta, aberta, e cheia de amor. Tinha um fascinante odor, o fedor da mais impura libertinagem.
Eu não falo mais por mim! Quem fala por mim é essa rosa! Me usa, me maltrata, me vicia, me condena!
Sou planta carnívora! Vem te entregar à nudez escancarada de meus dentes... que eu te entrego a minha saliva!
Posso sentir minhas raízes fora do chão! Eu sou mel, e estou es-cor-ren-do!... Me entrega a tua pureza, e mela! Mela! Mela!

Calda de seiva na saliva, tempero de pólen na língua, pétala viva na gengiva! Espinha dorsal na ferida, néctar em carne viva, dente cravado na terra não se tira!
Outono! Outonoooo!

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Eu não sou mais simples



É que até um dia desses eu ainda costumava abrir o coração, e não haviam tantas coisas dentro de mim.

Sabe? 


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Trololó

Oi, meu nome é Jocasta. Guardo no meu baú todas as lembranças jogadas ao vento. Temos todas as cores que possa interessar: Azul-céu, amarelo-mijo, amarelo-ouro, vermelho-sangue, rosa-espinhos, verde-floresta, laranja-victor hugo, prata-diamante, preto-computador lcd, e cinza-multiuso. Porque o multi-uso? Ora, por ser multi-uso ele serve de tudo. Está aí o porque de seu preço ser meio salgado. Hohoho, não me venha com risinhos. Eu ainda digo "salgado", é assim que minha bisavó ainda comenta os preços de minhas lingeries. Anh.. não entremos em detalhes, né moço?

Falava de lembranças. Eu já tive algumas, sabe? Quando não me prendia em qualidades fúteis. Depois que guardei em mim essas tranqueiras todas, resolvi fazer uso de cada uma. Por isso agora eu guardo todas essas tais lembranças que foram jogadas ao vento. Essas que ninguém dá valor, mas que pra alguns faz uma faaaalta. Isso mesmo, alguns passam a vida inteira atrás de uma simples rosa-espinhos e nunca consegue. Talvez, quem sabe, só diz que vai atrás mas nunca foi, né.

Bom, também trabalhamos com rendas e quitutes de toda a parte. Tenho trololó, guardanapos, e infinitudes só. Também crio nomes pras coisas, acho tão bonito. Tem uns nomes feios pra dedéu, sempre quis mudar. Porque não chamar esse doce de trololó? É lindo e musical. De "dedéu" eu gosto, acho bom.

Ando por essas ruas estranhas e escrotas e só posso pensar em uma coisa: que merda, que grande e enorme merda. Nem sei porque to falando, ô moço. Não, não vai embora, compra um multi-uso, vai? É o mais caro, mas sai em conta, pode ter certeza. Bom, me dê licença que vou dançar um Corumbá ali com meu Efésio. Não quero mais saber de lembrança nenhuma. Quer saber? Jogo no vento também, e que se foda a gasolina.

(Delianne Lima)

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Sinta

Era uma mulher gorda, bêbada, muito engraçada. Um menino segurava em sua mão. Devia ser o seu filho. De repente, a muher gritou, como se tivesse os órgãos mutilados, e tropeçou em uma pedra. Caiu em cima da vala. Todos os meus amigos se divertiram com a cena.

Eram seus dedos pesados, nervosos, fazendo pressão na minha pele, no meu cérebro, na minha vida. Ela dizia que eu estava nervoso demais. Tremi. Caí da cadeira.

 
Não é sangue que circula aqui. É loucura fluida.

 

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Não podia deixar de ser

De repente vejo uma estrada longa, infinita, escura, levando a lugar algum. Caminho enquanto penso que aquele lugar é um lugar de transição, de chegada, de partida, de mudança de estado. De mudança. Ando, ando, com a sensação de que não vou chegar a lugar nenhum, mas ao mesmo tempo tão, tão longe!
É como se sentir engolido pelo poder surreal do acaso, essa força violenta de deslocamento, de giro e de loucura que a vida dá às vezes, ao abrir um breve parêntese em nós (e isso é encantador).

Mas vamos ao que me interessa. Nessa estrada, quando me dou conta, não são só os meus passos que eu escuto. Existe a presença de alguém junto, alguém perto, alguém que de certa forma tá sempre, sempre perto. Tão perto, a ponto de ser dentro, e de ser morada.

És tu.