sábado, 20 de outubro de 2018

Quem abriu a caixinha

Uma caixinha.
Dentro dela, o reencontro.
O eu.
Aquele amor, que ficou lá atrás.
A casa da minha avó.
A vontade de ir até a casa da minha avó.
O retorno até a sensação de ter vontade de ir até a casa da minha avó.
A voz da minha mãe.
O amparo do útero.

Uma caixinha.
Dentro dela, tudo.
Meu pai embalando a rede.
A rede mergulhando até os peixes.
O peixe, servido para o almoço.

Uma caixinha.
Dentro, as pessoas da família mastigando.
Meu avô mastigando de boca aberta.
Meu avô babando.

Uma caixinha.
A baba do meu avô.
Derrame.
Uma bíblia.

Eu não sei quando a caixinha se abriu.
Capítulos e versículos formando legendas em todas as direções.
Chiado, chuvisco. Mal sintonizado.

A caixinha.
A propaganda eleitoral atravessando os canais.
Os seus dentes atravessando todos os canais.
Demônios fogem da tela.
A escuridão eletrônica.
Correntes elétricas mobilizando pastores a conduzirem seus rebanhos de demônios em direção ao abismo.
Demônios voando.

Minha avó passeia de bicicleta nas nuvens.
Uma caixinha.
Sem fundo.
Sem chão.

Palavras não mais se reconhecem.
Palavras em crise, consolando-se umas às outras.
Palavras-canhão.
Palavras-bomba.
Palavras sem cor nem cheiro nem textura nem valor nem pai nem mãe.

Palavras se atirando no abismo.
Sem fundo.

Uma caixinha.
Uma notificação.
Modo avião.
Sem palavras.
Voando.
Bicicleta.

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Estranha

Duas da tarde. Um ponto de ônibus. Duas mulheres. Uma jovem e uma velha. Apenas duas mulheres, num ponto de ônibus no meio do nada, em uma gigantesca estrada vazia, onde o sol fazia tudo parecer de um brilho incômodo aos olhos.

A mais velha usava colírio, e a mais nova, óculos escuros.

Duas mulheres absolutamente estranhas uma para a outra.

Por ser domingo, o ônibus demorava mais que o normal, e nenhuma das duas tinha condições de pegar um Uber. Na verdade, a mais velha ainda não sabia o que é Uber, mas se pudesse, chamaria um taxi. Ou um mototaxi. Quem sabe até um bicitaxi ou taxicleta, como chamavam no interior do Piauí, onde morou por alguns anos, onde hoje existe Uber bike. Mas não havia dinheiro para nenhuma das opções anteriores, e, pensando bem, o ponto de ônibus até que estava interessante.

 A mulher mais nova tinha um nariz que muito lembrava o de seu marido. O marido da velha, no caso. A velha não ficou em paz com esse nariz. Ela estava viúva. Havia um dia. Esse nariz provocou um misto de agonia, saudade e excitação. “Certamente, um nariz piauiense”, disse para si mesma. E o desvio de septo tinha um charme particular que muito lembrava o falecido.

Então, pensou em meter o seu nariz, quer dizer, fazer algo para se aproximar da moça, embora não soubesse exatamente até que ponto queria chegar. Nunca foi lésbica, mas aquilo era diferente. “Não vou olhar muito”, pensou. “Ela pode perceber”.

A mais nova, por outro lado, simpatizou com a velha. Por trás das lentes escuras, percebeu o olhar nada discreto da outra. Nunca teve problema em se relacionar com outras mulheres. Nem com velhas. Na verdade, dependendo do pagamento, não havia problema em se relacionar com ninguém. Mas olhar daquela senhora em sua direção tinha algo de diferente. Era um olhar que a fazia se sentir, de certa forma, especial. Como se houvesse algo em seu rosto digno de grande atenção.

A velha, não sabendo o que fazer, pensou em tocá-la, mas isso seria muito invasivo. Cogitou, então, simular uma queda para ser socorrida por ela antes de chegar ao chão, mas pensou que talvez ela fosse indiferente, o que seria muito arriscado, levando em conta a osteoporose. Por último, pensou em pedir ajuda para atravessar a rua, mas isso não faria sentido, já que o ônibus não passava do outro lado.

“Aqui que passa o ônibus pro centro?” – A mais nova foi quem tomou a atitude de aproximação. Bastaram dois minutos pra que elas deixassem de ser estranhas, e bastou um ônibus passar pra que elas nunca mais se vissem.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Movimento fogo

O corpo bicicleta. O corpo rasga vento. O rosto ardor. O sol céu. Céu sol céu. Os pensamentos céu. Sol cabeça. A paisagem mental. O medo e a adrenalina. O GPS, o engano. A voz autômata mentira, os ciclos círculos, as voltas voltas. As pessoas. As piscinas. A fumaça, a fumaça. As curvas nuas. Ruas. A insistência. Sei lá pelo que. O risco. O espírito aventura. O exorcismo. A ponte. O corpo não lugar. Flutua. Farol arde. Pele muda cor. Pedal passarinho. Rodas nuvens. Estratosfera. Completo vazio.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Crente

Há um vírus
morando aqui

Implantado
num coração bebê

Que cresceu
Se tornando algo

Que se imagina alguém
Que olha pro coração

E vê
um vírus
implantado
morando aqui



terça-feira, 13 de setembro de 2016

WTF

Eva e Adão viviam nus: assim está escrito. Até que os dois comeram a famosa fruta, e então, ops!, perceberam que estavam nus. Essa é a minha parte preferida: a percepção da nudez. E daí que estavam nus? Imagino que se eu nascesse (ou surgisse do barro) em um lugar onde a roupa ainda não foi inventada, cercado por outros bichos que também andam pelados, estaria bem ok com isso.

Só que não. Quando "perceberam" que estavam nus, "meu Deus!", eles se tamparam, e assim estamos até hoje: vestidos. Esse é o legado de Eva e Adão: a invenção da roupa. Não conheço, particularmente, outra narrativa mitológica que dê conta de explicar exatamente isso: por que o ser humano se veste? Assim como o homem é o único animal que ri, é o único que fica pelado (porque os outros simplesmente o são). Então é isso que significa ser racional? Ah tá.

A região do ventre guarda o "baixo corporal", responsável pela excreção do "lixo" que o corpo produz (a morte), e ao mesmo tempo onde se encontram os órgãos genitais, responsáveis pela reprodução (a vida) e pelo prazer sexual, que também é uma PUTA necessidade fisiológica (Bakhtin, 1987).

Por algum motivo, sentimos vergonha disso. Não é que sintamos vergonha especificamente daquilo que nos dá prazer, nem daquilo que é por onde saem as excreções, nem daquilo que é responsável pela procriação. Sentimos vergonha desse "combo" vida-morte-prazer.

Desde a Idade Média até hoje, a topografia corporal é rebaixada do "céu" (a cabeça, onde estão as idéias e a razão) à "terra" (o ventre, onde são enterrados os mortos e de onde surge a vida) em expressões como "vai se foder","vai cagar", "levou uma mijada", "filho da puta", "caralho", "escroto", "buceta", etc, que são considerados "palavrões". Tais expressões não devem ser ditas, e sim mantidas guardadas na cueca, calcinha e sutiã. Enquanto isso, os cachorros se cumprimentam cheirando o cu. Wtf?

Feitas essas considerações, só posso tirar duas conclusões:

1. Se Eva e Adão não tivessem comido a fruta, hoje em dia mandaríamos todo mundo se foder e todo mundo estaria de boa com isso.

2. O ser humano tem vergonha de ser animal.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Dona Olga



O ônibus não passava. Já fazia meia hora e nem sinal. Pensei em ir para a outra parada, a da avenida, mas meu sentido místico não me permitia. Sabia que assim que saísse dali o ônibus chegaria.



Resolvi esperar mais uns minutos.



Quando dei por mim, senti uma mão delicada no meu ombro: era uma pequena senhora, devia ter uns setenta ou oitenta anos. Aquele sorriso acompanhado de grandes óculos e uma penugem que mais parecia lã de ovelha me transmitiam uma energia tão boa que nem sabia explicar.



- Olá, você sabe se aqui passa o Alto Florida?

- Passa sim. Passou um agorinha mesmo - respondi.

- Poxa vida, quase que consigo pegá-lo!

E deu um sorriso maroto. Logo depois disso, ficamos conversando amenidades, como velhas comadres até que a simpática senhorinha me perguntou: "Estou indo ao museu, quer ir comigo?". Fiquei assustada com o convite assim, de supetão, mas aceitei.



Nesse dia ganhei uma avó.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

DEDICATÓRIA e AGRADECIMENTOS

Como parte do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Bernard Freire, no curso de Licenciatura Plena em Teatro, da UFPA.

Dedicado: ...à Deus, a imaginação e ao mundo.

Agradecimentos: ao casulo da família, ao meu pensamento artístico por vocação, aos lugares artísticos: antigo grupo de teatro e coro cênico da UNAMA, A Casa da Atriz, A Casa Dirigível, as ruas e calçadas e aos pontos de arte e comunicação de saber, aos grupos e extensões que me direcionaram a esse fazer teatral. A turma de Teatro 2012 (Travestruzes, Disney, Ratas); aos coletivos: ENECOS e Vamos à Luta; aos amigos artistas dessa cidade de Belém. Aos amigos: Tiago Júlio, Cléber Cajun, Mônica Gouveia, Rogério Guimarães, Adriano Abbade, Raynéia Machado, Júlio Miragaia, Evelyn Loyla. A toda forma de se viver nesse mundo, aos passos lentos, as ocupações, aos livros, as rodas de conversas nos bares, ao silêncio sonoro, aos momentos de produção e conhecimento de cada tempo, a juventude, as artes invisíveis, aos projetos que apareceram nesses anos de curso, ao ENEARTE, as aventuras que se tornaram histórias memoráveis. A Magaly Caldas pelo companheirismo, ensinamento e ideias sobre a geografia do mundo. As raízes de pensamentos que se firmaram nos caminhos da pesquisa.  Aos blogs:

Teatro Cláudio Barradas - http://teatrobarradas.blogspot.com.br/
Rhuanne Pereira - http://www.rhuanytta.com/
Blog Psicodélica Imaginária ¬- http://psicodeliaimaginaria.blogspot.com.br/
Instituto de Ciência das Artes/ICA/UFPA - http://www.ica.ufpa.br/
Douglas Cirqueira - http://douglascirqueira.wix.com/

As viagens, a vida universitária, as pesquisas e desbravamento dos dias, aos amores que davam a real importância de viver o ciclo acadêmico. A ação, a modificação dos dias, a mudança por passos lentos, ao espaço visto da janela, aos cantos, a vida acadêmica e expressões de conhecimentos, aos professores que toparam a proposta da pesquisa, ao destino que se segue agora, a revolução da arte, da vida, ao esgotamento da mente, corpo, liberdade do ser, a catarse, a tudo isso aqui agora.